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Na última quarta-feira, 23 de abril, foi realizada uma escuta em Abaetetuba pelo Ministério Público Federal (MPF) para ouvir as comunidades atingidas pelo projeto de instalação de um porto da multinacional Cargill. A reunião, conduzida pelo procurador da República Rafael Martins da Silva, reuniu lideranças do PAE Santo Afonso, bem como representantes de comunidades quilombolas e ribeirinhas da região.

O encontro, realizado no próprio assentamento, trouxe à tona denúncias graves: as comunidades afirmam que jamais foram consultadas de forma livre, prévia e informada — como determina a Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), ratificada pelo Brasil há mais de duas décadas. Tal ausência, além de ferir a legislação nacional e internacional, desrespeita um direito fundamental desses povos de decidir sobre projetos que impactam diretamente seus territórios e modos de vida.

Segundo relatos apresentados na reunião, o que houve foi apenas a visita de representantes de empresas terceirizadas da Cargill, que anunciaram a instalação do porto como fato consumado, sem qualquer possibilidade real de diálogo. “Não houve consulta. Vieram apenas dizer que o empreendimento iria ser executado e que teríamos que aceitar isso”, relatou Dilmaiko Marinho Freitas, liderança local.

As denúncias ainda apontam tentativas de cooptação de lideranças por parte de intermediários, que tentaram descaracterizar o processo de consulta legítima, usando métodos que as comunidades consideram assediadores e desrespeitosos. Rafaela Costa dos Santos, outra liderança presente, lembrou que entrevistas e gravações foram realizadas sem o devido esclarecimento, sendo depois utilizadas como suposta prova de consulta. “De má-fé, usaram nossas imagens e vozes. Mas nunca fomos consultados”, reforçou.

Outra preocupação expressa pelas comunidades, e levada aos processos judiciais em curso, é a ausência de avaliação dos impactos acumulados na região de Barcarena, onde diversos empreendimentos portuários vêm sendo instalados. A falta de estudo sobre os impactos sinérgicos (aqueles que se somam e se intensificam ao longo do tempo) representa um grave risco à sobrevivência das comunidades e à preservação ambiental.

Os efeitos já são sentidos: diminuição da pesca, da coleta e da caça, atividades que sustentam as famílias locais há gerações. Além disso, pesquisas indicam níveis alarmantes de chumbo no sangue dos moradores e aumento de doenças infecciosas, ligadas à poluição dos rios, agravada pelo despejo de dejetos por embarcações de carga.

Dilmaiko Freitas resumiu a preocupação coletiva: “Aqui 95% dos assentados são pescadores. Se a empresa se instalar, de que vamos viver?”. A escassez de água potável também foi denunciada. “Nosso povo está morrendo aos poucos”, lamentou Rosicleia Silva Ferreira. João Assunção dos Santos foi direto: “Nossa preocupação é com as futuras gerações. Estamos criando crianças que talvez nunca saberão o que é um peixe vivo em nossos rios”.

Distante da lógica industrial, a vida nas comunidades de Abaetetuba segue os ensinamentos de seus antepassados, baseando-se na coleta, pesca e caça sustentáveis, preservando a floresta e suas riquezas. “Aqui ninguém passa fome. A natureza dá tudo, se a mantivermos em pé”, declarou João Batista Caripuna Lobato, clamando por políticas públicas que fortaleçam e não eliminem essa forma de vida.

Antônio Nazaré Azevedo Costa recordou que espécies emblemáticas como o peixe-boi, a cotia e o guariba ainda habitam a região, graças à proteção comunitária. “Queremos continuar nosso trabalho de conservação. Mas estamos sendo violados, até mesmo pelo Estado”, protestou.

A história de luta pela regularização do PAE Santo Afonso, contada com orgulho por Raimunda de Jesus Amaral Bahia, presidente da associação local, revela o valor que essas comunidades atribuem à terra conquistada. “Dormimos na porta do Incra para sermos reconhecidos. Hoje temos escolas, saúde e universitários formados”, relembrou.

O procurador Rafael Martins da Silva atualizou as lideranças sobre o andamento dos dois processos judiciais em curso: um que questiona a apropriação das terras pela Cargill e outro que exige a realização da consulta prévia. A Justiça já determinou a suspensão das licenças de instalação e operação do porto até a conclusão do procedimento de consulta.

Gabriella Florenzano
Cantora, cineasta, comunicóloga, doutoranda em ciência e tecnologia das artes, professora, atleta amadora – não necessariamente nesta mesma ordem. Viaja pelo mundo e na maionese.

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