Lá em casa, em Santarém, o único filho que nunca teve medo de cachorros sempre fui eu.
Por isso, era sempre escalado para comprar pão, de manhã cedinho, na Padaria Soberana, do seu Antonico.
Até que a distância não era assim tão grande. Mais ou menos uns cento e cinquenta metros.
Mas o problema não estava na lonjura ou proximidade.
O desafio era passar pela frente da casa do seu Maia Catraieiro, nosso vizinho e seu feroz guardião, o Retinido, um vira-latas cor de café com leite, muito atrevido.
Ele marcava o território. Ninguém podia invadir os limites que ele traçava. Vinha latindo e mostrando a dentadura afiada.
Quando papai ou mamãe nos mandavam na padaria, a pirralhada ficava em pânico.
Para os medrosos, talvez a melhor solução fosse dar a volta pelo quarteirão, subindo o “morro da fortaleza” e descer pela saudosa escadaria.
Mas na casa do seu Abelardo Gentil, no meio do caminho, existia outro vira-latas baixinho e ainda mais estressado, o Mack.
Então, geralmente, sobrava para mim.
A Padaria Soberana era um ponto gostoso: vendia pão cacete, pão doce, bolacha cabeça de macaco, torradas etc.
E como na época não havia um fogão decente para assar bolos de aniversário, lá ia eu levando a forma para ser colocada no forno a lenha.
Além dos retinidos e macks do caminho, mulher não podia entrar no local onde estava o forno, que os padeiros eram “apresentados e enxeridos” e ficavam fazendo gracinha.
Então, novamente eu era escalado.
Na hora do café da manhã a briga era por causa do bico de pão. Nós adorávamos tirar o bico, passar manteiga, mergulhar no café.
Os bicos faziam as delícias de nosso paladar de meninos.
Meu pai, tentando acabar com a confusão diária, estabeleceu que cada dia o bico de seria de um filho. Um inusitado “revezamento de bicos”.
E quem enfrentava os cães e ia todo dia à padaria?
Eu mesmo, claro.
Então, no caminho, eu já tirava logo uns dois bicos pra mim e guardava no bolso.
Descoberta a tramoia, fiquei um bom tempo de castigo sem poder dar uma “bicada”.
O trajeto de casa para a padaria não era feito apenas de cães.
Tínhamos uns vizinhos excelentes, peruanos, evangélicos, com quem dividíamos a amizade e os folguedos infantis.
Porém, eu era um menino “atentado”.
No caminho para comprar pão, se um deles estava na porta da rua eu gritava:
– Protestante, que caga na estante!
Eles ficavam furiosos e retrucavam:
– Católico Apostólico Romano, que caga uma vez por ano!
E a amizade continua. Quando, raramente, nos encontramos, hoje em dia, nos saudamos com muito afeto e risadas, afinal de conta, existem momentos que são breves mas são inesquecíveis por toda a vida.
*O artigo acima é de total responsabilidade do autor.
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