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Sem dúvida que Alter do Chão é um santuário da criação divina. Deus deve ter perdido uns cinco minutos moldando aquele paraíso, e cinco minutos de tempo divino não é pouca coisa. Começa que em Alter do Chão tem, de dar na cara, aquela banana frita que só nossas avós sabiam fazer e saboreavam com o cafezinho de depois da sesta. Comprei logo uns quatro saquinhos para ir roendo enquanto me assuntava com um dos catraieiros de como podia chegar na pequena praia da frente. Todo o pontão de areia que surge no verão, que chamam de Praia do Amor, e separa a vila do lago, ainda estava quase toda submersa e só a cobertura de palha das barracas era avistada de longe.

Fui informado que uma viagem de catraia até a nesga de praia, levava uns dez minutos e custava R$ 4,00. De motor rabeta o mesmo percurso demorava bem menos, mas custava R$ 10,00. Como meu filho queria tirar algumas fotos, decidimos ir de catraia. E fiquei surpreso ao saber que por R$ 0,50, a gente podia trocar de roupa num banheiro público lá mesmo na pracinha e minha maior surpresa, mesmo, foi ter entrado no banheiro e não sentir nenhum mal cheiro, tudo limpinho e digno de povo civilizado.

Ao chegarmos, a gentil senhora de uma das barracas mandou colocar pra nós uma mesa à beira d’água, e revelou uma bela coincidência que nos fez merecedores de um tratamento digno de reis: a dona, acreditem, era obidense, conheceu meus pais e, quando criança, morou quase vizinha da poderosa sede do Antonico Pé Arpão, um dançará no final da rua da Usina de Luz. Depois dessa boa nova e de entregar toda a nossa estada aos cuidados dessa santa senhora, encomendamos duas caipirinhas e uma bela caldeirada de tucunaré para a hora do almoço. Só faltava um tira-gosto decente, quando… bom, meu filho chegou perto e me segredou:

-Pai, acabo de ver a mulher mais bonita da praia. Dá uma olhada, bem aqui do lado.

Olhei, claro.

-Bonita mesmo, mas não tem um jeitão de gringa? – falei mostrando desinteresse. Com filho não se brinca.

-Não, pai, é brasileira, indagorinha falou português com o garçom.

Prestei melhor atenção. Realmente, parecia uma deusa perdida naquelas lonjuras de Alter do Chão, e não era difícil de adivinhar que estava a muitas léguas de casa. Escondia um olhar solitário por debaixo de lentes escuras e, consciente da sua beleza, aparentava ignorar todos os olhares com o mesmo desprezo que se dá para um cão atropelado no meio do asfalto. Acompanhada (mal acompanhada, diga-se) de apenas uma mochila, ela tomava uma cerveja com tira-gosto de camarão. Virei pra ela e perguntei:

– Moça, esse tira-gosto de camarão está bom?

-Tá ótimo, o senhor é daqui?

-Sou de Óbidos, mas moro em Belém. Este aqui é meu filho, estamos de férias.

Pronto, ela disse que era paulista, natural de Santos, formada em Administração Pública, 23 aninhos, que tinha ido a Manaus participar de um Congresso, que aproveitou a oportunidade para conhecer Alter do Chão onde estava numa pousada e que, bingo!, estava sozinha. No fim, perguntou se podia sentar em nossa mesa.

-Claro! – aí, na resposta, meu filho foi mais ágil do que eu.

-Ainda bem que o senhor puxou assunto, eu mesma já ia embora. Estava incomodada com aqueles marmanjos ali naquela outra mesa. Não sei explicar, mas vocês dois são diferentes, têm cara de gente boa.

Prestei atenção e os quatro marmanjos escutavam alto uma música do Amado Batista.

– Como é seu nome? – perguntei.

– J… (desculpem, não vou dizer o nome da moça).

Ela deu um sorriso.

-O senhor não leva a mal?

-O quê?

-Meu pai também é assim, careca igual ao senhor.

Estão vendo? Ser careca, às vezes, tem lá suas vantagens.

Meu filho também entrou na conversa e logo os dois pareciam velhos amigos. Ela falou que na semana seguinte passaria por Belém e procurou anotar, numa cadernetinha, todos os points que o Ary passava sobre a capital. Foram continuar o papo nas águas límpidas e convidativas do Tapajós, enquanto eu curtia minha segunda e última caipirinha do dia. Conversa vai, também ficamos sabendo que a menina era fluente em inglês e francês e que já tinha morado um tempo na França e na Inglaterra.

De repente, uma correria anormal que logo virou tumulto em torno de uma árvore, na beira da praia. Meu filho e a J… foram ver o que estava acontecendo. Era uma cobra papagaio engolindo um sapo. Fiquei impressionado com a reação ecológica da maioria das pessoas contra os quatro fãs do Amado Batista, que por força queriam matar a serpente num tom de valentia. No fim, os curiosos tiveram oportunidade de registrar a cena, mas deixaram que a natureza seguisse seu sábio curso. Sorte da cobra papagaio e a segunda derrota dos fãs do Amado Batista que, depois dessa e do desprezo da J…, resolveram sair de fininho numa catraia. 

Veio o almoço, possivelmente uma das melhores caldeiradas de tucunaré que eu já comi na vida. Nossa anfitriã, além de obidense, tinha mãos de ouro no preparo do peixe. A J…  ficou apalermada com o sabor e anotou tudo na caderneta. Confessou pra nós que estava escrevendo um diário da viagem. Lá pelas quatro, ela e meu filho vieram me dizer que queriam voltar para Alter do Chão, pois pretendiam passear de caiaque. Alugaram um casco para duas pessoas (aí, três era demais) a R$ 5,00 a hora e saíram por matos nunca dantes navegados. Como navegar é sempre bom e preciso, o pai foi convocado para servir de fotógrafo e registrar a saída e a chegada da dupla, que não demorou sumir no rumo da linda lagoa de Alter do Chão. Comprei mais uns três saquinhos de banana frita e, enquanto esperava, fui matar a hora, visitando a antiga igrejinha do lugar. Há muito tempo, coisa de uns trinta anos, visitei pela primeira vez aquela capela e fiquei impressionado com seu rico acervo de arte sacra, em forma das belas imagens talhadas em madeira. Entrei e, pasmem, não vi mais as antigas peças nos altares. Indaguei sobre as imagens a um senhor que parecia ser o vigia, me disse apenas isto:

– Foram sumindo com elas. Dizem que até um deputado federal levou.

O caiaque só retornou às cinco e meia. Registrei a chegada sem atropelos, e a amiga J… quis saber se voltaríamos no dia seguinte.

– Em torno das 9 horas – respondi.

-Posso esperar por vocês?

-Sem problema! – de novo meu filho foi mais ágil do que eu.

Dia seguinte houve aquele atropelo com o Detran (contei na crônica I), que ameaçava rebocar nosso carro, e acabamos nos atrasando, mas a J… estava lá firme. Atravessamos novamente para a barraca da nossa amiga obidense:

-O que querem almoçar hoje? – ela indagou.

-Tem pirapitinga?

-Venha ver.

Ela abriu um isopor entupido de tambaquis, surubins e pirapitingas. Escolhi uma linda banda de pirapitinga e mandei separar para comer assada de brasa.

-Deixo logo no tempero e, quando quiser, é só avisar que a gente prepara – ela disse

Vou poupar meus leitores sobre o almoço de domingo, mas posso afirmar que foi tão bom ou melhor que o do dia anterior. Aproveitamos ao máximo o belo dia e retornamos a Santarém às seis da tarde para descansar, pois dia seguinte iríamos pegar a lancha com destino a Juruti. A J… se emocionou na nossa despedida, ficou com os olhos marejados e trocou com meu filho todas essas siglas malucas da internet: Email, Menseger, Orkut, Blog, fone e por aí a fora.

-Que bom ter conhecido vocês – ela disse- hoje é tão raro encontrar homem que sabe respeitar mulher…

Ganhamos um abraço e fomos embora, ainda a tempo de ver sua imagem nos mandando um tradicional aceno de adeus, que durou até o carro desaparecer na primeira curva.

Ademar Ayres Amaral
Engenheiro e Escritor.

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