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Como fazer alguém ir à guerra? Donde germinam os valores beligerantes a resultarem essa guerra? São essas as questões que partem para o início deste texto, e que dele resultarão outras a serem redarguidas. A partir delas, poderemos manusear um breve ensaio a respeito de quais são os modos e métodos que levam alguém a radicalização e quais são os seus exemplos no cenário atual.

O que me faz matar o meu semelhante? Objetifica-se o uso do combate sempre partindo de uma unidade à outra, o que estimula o desenfrear dessa primeira é um ato vindo da outra a criar alguma perturbação no meio neurológico. É isso o que explica Fathali M. Moghaddam, psicólogo nascido no Irã, autor, professor de psicologia na Universidade de Georgetown e diretor do Programa Interdisciplinar em Ciência Cognitiva do Departamento de Governo, em seu estudo The Staircase to Terrorism. Esse titulo – em tradução livre: a escadaria até o terrorismo – nega a individualidade dos atos terroristas como sendo a única desculpa para a sua ocorrência e alude a perceber a existência de um padrão claro na mente dos criminosos, tendo eles atravessado estágios (na metáfora, degraus de uma escada) até chegarem ao ato terrorista efetivo. A perturbação no meio neurológico mencionada é, portanto, descrita por esses estágios, degraus, até chegar em seu ápice, onde um indivíduo finalmente ataca outro, por matá-lo em determinados casos.

Ao cabo do tempo disposto a subir degrau por degrau, o indivíduo enfim chega ao seu último, o quinto: “Fifth Floor: The Terrorist Act and Sidestepping Inhibitory Mechanism”. Aqui, a radicalização é matéria inteira e o objetivo é assassinar o seu semelhante. Moghaddam traz então uma avulta teoria do saber-científico, conhecida como “inhibitory mechanisms”, do zoólogo, etólogo e ornitólogo, Konrad Lorenz. O pesquisador revela a presença de determinados mecanismos que servem como inibidores para que animais de uma mesma espécie não se ataquem até a morte. Podemos bem chamá-los de amolecedores de corações, pois afastam um coração duro a se tornar vil: em uma alcateia, por exemplo, quando dois lobos se enfrentam, fica nítido, de imediato, qual é o superior e o inferior; enquanto o lobo evidente como o mais forte mantém uma postura confiante, o mais fraco detém-se à submissão extrema, contando com a compaixão do adversário para não morrer. Nós trabalhamos da mesma maneira, assim como os lobos, nossos mecanismos inibidores encontram salvadora guarida em uma postura submissa, arqueada, a suplicar uma compaixão alheia contrária a brutalidade exposta. Mas a nossa quantidade de inibidores comprova-se muito mais alta se comparado a tais animais: os gritos sofridos, em hora de desolação e pavor, as lágrimas caídas, os contatos visuais aproximados da tremura do medo, são apenas alguns dos nossos maiores utensis para não morrer.

Contudo, Lorenz também nos revela que criamos mecanismos diversos para abater esses inibidores. Dois dos mais usados são a criação de armas a pólvora – tendo em vista que o seu tiro pode ser proferido a longa distância, não tendo, desse modo, oportunidade para que as súplicas consigam impedir o ataque – e a desumanização do semelhante, tal recanto é a inefável capacidade neural brandada de nós. O que me faz matar o meu semelhante é, por conseguinte, não o mensurar como um, porém um alheio à minha carne, ao meu pensamento, à minha beleza, ao meu contexto, ao que me corresponde eu ser eu. A distância psicológica e a consideração por valores tão qualificados contra essa espécie de subvida embotam, sumariamente, a ponta da cólera – em cuja vida se rarefaz pelo desapiedado ato de morte.

O viço, de capacidade até bela, com cujo trabalho emprega o cérebro humano, é arguido por muitíssimas esferas de controle das massas. Os governantes, seus aliados e seus opositores aprenderam a manejar a causa para uma perturbação neurológica no povo. O mapa de seus atos é fazer com que o indivíduo justifique tudo o quanto faz e perceba a tática terrorista como o único meio possível; para eles, estão agindo conforme a razão, por racionalizar cada movimento contínuo, quando, em verdade, a paixão é o norte de seus andares e estão mergulhados em teses preguentas, das quais se torna dificílimo sair. O claro exemplo do oito de janeiro deste ano é o trabalho completo de Fathali M. Moghaddam. A mesmice com que se é avaliada a imagem da história sempre fora atribuída à vulgaridade, ao desmantelamento do respeito, da sujeira mais podre, mas havia sido a primeira vez que a Praça dos Três Poderes fora toldada pela lama dos néscios. Nunca antes a palavra “polarização” havia sido tão comentada, e tudo por conta das emoções atiçadas e perpetradas pelos dois pólos majoritários do poder político. A categorização de “nós-contra-eles” já era estruturalmente imersiva, em um grau tão potente que já eram células terroristas prontas para o ataque, e a saída então passara a ser uma ofensa imediata. Tanto assim, a destruição do Supremo Tribunal Federal e do Congresso era a maneira com que se descontava o ódio: o adversário era apenas uma unidade a ser eliminada, pois (tendo demonstrado menoscabo às súplicas de seus semelhantes, ou de seus alheios) era necessário (mais que isso: inevitável) a morte àqueles demônios.

Um pouco antes de Moghaddam, o general e teórico prussiano do século XIX, Carl von Clausewitz, em Da Guerra, elaborou, desta vez com aspectos militares, os motivos da progressão de um excitado golpe contra um terceiro. Diferente do terrorismo, a guerra é o combate vindo cá de um lado, lá do outro, a desumanização do semelhante, tornado, como dito, em alheio, vem dos dois lados: “A tese deve ser repetida, portanto: a guerra é um ato de força e não existe qualquer limite lógico para o emprego desta força. Cada lado obriga, portanto, o seu oponente a fazer o mesmo que ele. Tem início uma ação recíproca que deverá, em tese, levar a extremos”, ele diz. Assim, a finalizar o tópico de controle das massas, jaz, na temática, o prodigioso ensinamento com que nos perpetram as elites que nos tem: a guerra é a domesticação do povo para que virem bravios famintos pela carne dum animal qualquer; enquanto brame o animal caído e come o animal aguerrido, a guerra não é mais que “a política por outros meios”.

Taí, desses parágrafos predecessores, a primeira parte de nosso breve ensaio; a outra, é a que se segue. O leitor deve lembrar que o mencionado no primeiro parágrafo era que daquelas primárias questões resultariam-se outras, e achar-lhes-á alguma resposta era o previsto. Pois bem: sitiarei ora os exemplos de alguma salvação contra a domesticalização-bestial citada e quais foram os grandes nomes, a meu ver, que lutaram contra essa onda de teimar por ver nossos irmãos como um corpo estranho, um vírus contra alguma poderosa vacina, cuja comprovação científica é enojosa.

Que vale morrer por uma pátria hipócrita? Do autor paraense, Herculano Marcos Inglês de Sousa, até o americano, campeão de pugilismo, Muhammad Ali, a pergunta emanou por entre suas divagações, qual um dilema de vida-ou-morte. A começar por meu conterrâneo, Inglês de Sousa fora um dos grandes nomes da literatura brasileira a ter receio da injustiça; de coração nobre em luta digna, escrevera O Voluntário, conto retratado pelos medos e pesares de um povo pré e durante a Guerra do Paraguai de 1865, a maior guerra da América do Sul. A estória ocorre e passa pela vida de Pedro, um jovem pescador de pirarucu e peixe-boi, e sua mãe, tapuia Rosa, vivenciadores de uma vida simples à margem do rio. De vida pacífica e calma, nunca por resvalar seus princípios e valores, são de uma tamanha doçura e solenidade para com os companheiros e vizinhos. Um dia, no entanto, Pedro é pego desprevenido por Fabricio, capitão encarregado de levar os tapuios a servir. O comandante e Pedro partem para uma uma trocação incessante, porém o superior acaba por vencer, em vista da ajuda de parte de seus homens junto a si. O rapaz então é levado ao camburão e mandado para o Paraguai.

Erguido contra o Estado brasileiro, Sousa parte em briga, por expor a maldade com que sofriam os povos indígenas, mandados à força para a guerra, vislumbrados qual seres de uma vida miseranda, inútil e descartável. Esse título de “O Voluntário” faz crer na ironia expressa pelo escritor, pois os “voluntários” eram somente jovens ou velhos reservistas forçados ao flagelo do combate armado. Rosely Batista Miranda de Almeida, teórica, especializada e graduada em História do Brasil, em seu texto de Bravos Guerreiros, documenta a participação dos indígenas na Guerra do Paraguai como sendo vítimas de um recrutamento compulsório, que afetava parte frágil da população. Na ocasião, inúmeros filhos tiveram, qual Pedro, de deixar suas mães à mercê da sorte, ocasionando a morte de inúmeras progenitoras.

A tentativa de dicotomizar em bom-mau os povos das nações fora a feição consumida por ambos os poderes para a justificativa do conflito: tanto o povo paraguaio teve medo dos brasileiros, tanto os brasileiros tiveram medo dos paraguaios; tal imagem apenas revela a capacidade de nossa mente de ser manipulada pelas potências, a fim de ver o massacre como a única passagem para a glória. Solano López, por exemplo, temido como um “monstro devorador de carne humana, dum tigre incapaz de um sentimento humanitário”, era tão temido quanto o exército brasileiro, o qual, em toque de massacre, massacrou muito mais, com a perda de 75% da população masculina do Paraguai. Achados puritanos, os generais brasileiros observavam os vizinhos como “inimigos dos cristãos”, e, por assim dizer, pensavam-se libertadores de alguma causa, mas, como atalhara o nosso narrador, “embora contra a vontade do libertando o libertasse a tiro”. A crítica contra um sistema hipócrita, trucidador daqueles desafiadores de suas ordens, a se dizer a favor de um ideal puritano, é o substrato das relações do texto e das relações da época.

Qual Inglês de Sousa, outro nome a se levantar em oposição ao prólogo de uma guerra, e a se manter firme até seu epílogo, fora Muhammad Ali, cuja recusa a participar da Guerra do Vietnã causara uma barulhenta causa nos Estados Unidos. Não obstante desconhecidos de quem era o tal “Vietnã”, uma gama de eleitores americanos apoiou a guerra pelo fundamento contra a expansão do comunismo. A propaganda de luta era tão rendida à estima que milhares de jovens, encorajados por seus próprios pais, foram enviados para um tiro certeiro, sendo grande parte deles, cerca de 1/3 do contingente mandado, composto por soldados afro-americanos, corpos de uma isca para um famélico cardume de piranhas. Após nocautear Zora Folley, Muhammad Ali, considerado por uma dose aguda de telespectadores como um dos melhores lutadores que a nobre arte já produziu, fora um dos recrutados. Já sendo campeão do mundo, Ali negara-se a participar do embate frenético, pois acreditava que sua participação haveria de pôr uma mancha em seu credo religioso. A problemática da negativa mostrara-se iniludível, e o título lhe fora retirado.

Mas o boxeador era acometido de uma fidúcia singular, e jamais retrocederia. E do alto de sua mocidade, aprendia a estreitar o fraco que havia pela compaixão como a mais bela conduta de suas imemoriais falas; em um de seus mais famosos discursos, disse: “Minha consciência não permite que eu atire em meu irmão, ou em alguma pessoa preta, ou qualquer pessoa pobre e faminta a viver na lama, pela grande e poderosa América. E atirar neles pelo o quê? Eles nunca me chamaram de ‘crioulo’, eles nunca me lincharam, eles nunca jogaram cachorros em mim, eles nunca roubaram a minha nacionalidade; nunca estupraram e mataram meu pai e minha mãe. Então atirarei neles pelo o quê?”. Assim, o calor de sua causa inundara todo o país, a criar e influenciar vários movimentos de combate ao racismo: “Vocês estão falando sobre mim, sobre esse recrutamento, enquanto todos vocês, garotos brancos, estão se matando para ir para a Suíça, para o Canadá, para Londres. Eu não vou ajudar ninguém a ter o que meus irmãos negros não tem. Se irei morrer, morrerei lutando aqui contra vocês! Se irei morrer, vocês são os meus inimigos! Meus inimigos são os brancos, não os vietcongues, ou os chineses, ou os japoneses. Vocês são meus oponentes quando quero liberdade, vocês são meus oponentes quando quero justiça, vocês são meus oponentes quando quero igualdade. Vocês nem lutam por mim na América por minhas crenças religiosas e querem que eu vá em algum lugar e lute, mas vocês nem mesmo me defendem aqui, em casa!”. A carnificina, portanto, não se farta de saciação nunca, não importa a sua estatura.

Mas foi assim, assim mesmo que se sucedeu, há alguns dias passou uma moça de vestido preto, altiva, afável, ela entrou, beijou a testa do defunto e acrescentou um roubo de seu anel mais precioso, e saiu alegremente. Pois ali foram 450 mil, lá, 3 milhões, aqui, eu. Que vale morrer por uma pátria hipócrita? Vale tudo!

João Paulo Duarte Marques da Cruz
João Paulo Duarte Marques da Cruz Estudante do Colégio CEI, apaixonado por literatura, cinema e política. E-mail katrinadmc@hotmail.com

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