0

Domingo, meio dia: uma capivara a margem do rio beberica a água. De pouco em pouco, como em um ato de tomar coragem, ela bebe a água, a qual, por sua vez, perpassa-lhe a garganta. De pouco em pouco, ela, enfim, resolve beber de mais em mais. Então, subitamente, as ondas inquietam-se e começam a quebrar-se. A capivara estanca. Não quer mais a água. Os olhos, em um estado novo de medo e, ao passo, verdadeiro, permaneciam curiosos em relação ao movimento. Com a tola inocência de mamífero não pensante, pensava que a causa daquilo tudo fosse ela, porém sua percepção achava-se distante do fato em si: alguém havia de estar ali e, decerto, não lhe era cabível a causa. Sem pestanejar, observava que algo aproximava-lhe o corpo; vinha do rio. Escutando um barulho vindo, desta vez, da floresta, a capivara desvia o olhar, entretanto, o cheiro quente e vivo que percorria ora seu nariz lembraria-lhe a carnificina que teria de enfrentar. Em poucos segundos de distração, um ataque ocorre-lhe de chofre. Um jacaré ataca-lhe e tira-lhe do habitat. Apressuradamente, o jacaré incorporou em tal ataque tamanha engenhosidade que, não importasse o que fosse feito, a capivara não havia de ter a possibilidade da fuga. Debatia-se, e atoa. Alheada da sensação de estar viva, a capivara nada tinha a fazer deste outro fato de agora: iria morrer, e o jacaré seria a sua causa. A cada mordida que lhe punha para fora as vísceras, a morte chegava mais perto. Nada adiantasse. Atravessara caminhos longos, terras vivas e podres, rios iguaizinhos a este e, embora, morreria ali, sem perspectiva futura. Foi quando, no que parece, o jacaré cansou de morder. É, cansou. Simplesmente. O profundo sentimento de amolação que comporia os seus restantes finais cessou. A capivara sentiu o doce sabor da esperança. Nadou. E nadou depressa à superfície. O jacaré havia ficado para trás! Era hora de viver! Chegada a superfície, remexeu o corpo todo para tirar aquela velha água que estava em sua composição. Sentiu o alívio e a cãibra que insistia. É, a perna queria falhar; mas isso pouco importava; importava mesmo era que estava a salvo! Todavia, se o cheiro de esperança estava presente, mais ainda o cheiro de carnificina penetrava-lhe as narinas. Procurando entender de onde vinha, o animal prestou-se a olhar com agilidade. Por conseguinte, viu: uma onça esperava-lhe ao meio dia, em pleno domingo. Tenho plena convicção de que nenhuma palavra trocada será mais necessária de ora em diante, pois já sabem como isto encontra seu fim: a capivara morrerá; em verdade, já morrera. A forma? Pouco importa. Quem a matara? Menos ainda. Ela terá de morrer, e não há nada a ser feito.

As capivaras, nativas da América do Sul, são animais coletivistas, com forte repulsa ao individualismo. Tanto é que, em épocas de secas, tais animais podem ter até cem membros em seus grupos. O caso descrito é de cunho raro, representando uma fatalidade para com aquelas capivaras que, excludentes de seus grupos, mortificam-se aos montes. Eis, enfim, o ponto levantado do texto: não há escapatória para com esses animais. Neste caso, vê-se todo o esforço de um corpo em vísceras à mostra para levantar-se e sair dali. Vê-se o espanto anunciado, a angústia também anunciada no instante da mordida, a mistura de água com sangue, o entendimento de que não adianta mais, o entendimento decorrente de que talvez haja luz e o encerramento desta luz de maneira mais violenta que se pode. A onça chega e o jacaré mantém-se. Se voltar ao rio, morre. Se ficar na superfície – adivinhem?

É exatamente aí, nessa indecisão, nessa fuga realizada com sucesso, nessa fuga realizada com fracasso, que tal capivara interessa-me. Faço, então, do destino do ser humano o destino de uma capivara. Atente-se às palavras. Não há erro. O erro seria a não equivalência. O erro seria não entender que da mesma substância da qual é feito o destino de uma capivara é a mesma substância da qual é feito o destino do indivíduo humano; mais precisamente: o ser humano das massas minoritárias. A cada um de seus passos, em que este acha que se livrou, de alguma maneira, o ser humano das massas minoritárias é posto como beligerante ou sem consciência, sempre sendo, assim, substrato tal de sua natureza. É, portanto, subjugado ao próprio destino. Veja, não há escapatória de preconceitos. Este indivíduo enfrenta o preconceito em todas as instâncias possíveis. Se conseguirmos estipular, por exemplo, que o preconceito contra LBTGQI+ é horrendo, sempre haverá uma ou outra forma, mais ou menos descarada, para este manifestar-se. A misoginia já é, por lei, crime, entretanto, sempre haverá escapatória – e para eles, sim, há – para os misóginos serem o que são, conquanto não ocorra de uma forma tão exposta. Até a luz da ciencia, seja qual for, parece incapaz de brilhar sobre a diferença, brilha bastante, porém, para o uso da discriminação. O modo-de-produção do ser, como órgão essencial, é o pré-julgamento. Os próximos coveiros da individualidade humana usarão métodos diferentes aos coveiros anteriores – e se perpetuarão. Daí vem a essência imutável de imputar ao outro a subalternidade do seu eu. Pegarei um exemplo e com ele irei percorrer todo o sentido de que quero comentar, mas, e vale aqui ressaltar, ele servirá apenas como ilustração para todos os meios de propagação de repúdio às massas. O preconceito linguístico utiliza da distorção da ciência das línguas para propagar-se sem interrupção. Ele é um dos únicos preconceitos não tão repudiados em nossa sociedade. Abre, então, espaço livre para julgar a forma de um homossexual falar, a forma de uma mulher expressar-se, a forma de falar de um nordestino, a forma de falar de um negro, a forma de falar de um periferico, entre outros, como justificativa de querer o “portugues correto”. Segundo o linguista Marcos Bagno, “o preconceito linguístico resulta da comparação indevida entre o modelo idealizado de língua que se apresenta nas gramáticas normativas e nos dicionários e os modos de falar reais das pessoas que vivem na sociedade”; isto é, entendendo que existe um “portugues correto” e que a língua não sofre alterações, o preconceituoso linguístico acha-se no direito de discriminar ou julgar aquele que não fala conforme o que este pensa estar correto. O que este faz é totalmente desproporcional, tendo em vista que não preza por compreender que existem diferentes variações da língua – variação geográfica, estilística, social, histórica etc – e que a língua não é viva; de modo que, ao estipular que o código de comunicação dos falantes de uma nação é inalterável, o preconceituoso acaba por matar a língua. O “portugues correto” não passa, assim, de um mito, utilizado pelas elites intelectuais, como uma tentativa de um “preconceito lógico”, advindo de uma lucidez desmedida, que, como balbuciações, tenta encontrar-se como sinal de identidade de uma teoria científica, o qual é apenas como qualquer outro preconceito: advindo de uma falácia, que, por sua vez, tem sua origem no embrutecimento da vida humana, tornando-a mero componente marginalizado.

Dá-lo como exemplificação de tal fenômeno ajuda a elaborar o pensamento que proponho: para as minorias, “se correr, o bicho pega, se ficar, o bicho come”. Tente fugir, mas o preconceito achará-lhe, mesmo que seja em sua própria língua. Albert Camus, filósofo e escritor existencialista, falou em demasia sobre “o absurdo”, em especial em seu ensaio “O mito de Sisifo”. O filósofo constata que a experiência humana é talhada no absurdo, desenvolvendo-se em um mundo contingente, em que não há sentido. Os filósofos existencialistas defendiam que a essência não está antes da criação do indivíduo, entretanto, está no decorrer de sua vida. Diga-me, portanto, de onde vem a essência daquele que é marginalizado dia e noite? Será mesmo que sua essência não é iniciada antes de sua existência? A essência, em termos sociais, psicológicos e individuais (advindos ambos do meio social), deste indivíduo pode ser mesmo escolhida? O tempo o leva ao entendimento de que “não adianta a luta, a minha carne, porém, é rejeitada; as minhas diferenças, porém, são postas como o que de pior tem em uma sociedade; não há sentido em nada que faço”. O indivíduo marginalizado, tanto, repito, em sua língua, quanto em toda esfera da intolerância, olha-se objetificado no olho de outrem, encarniçado em seu próprio afã diário, objetificado como servindo a um só propósito: o de ser proscrito, banido, isolado da “civilização” onde se mantém. Daí vem as inúmeras estatísticas de crianças que entram no mundo do crime. Nutrem-se de uma conclusão interior que exprime o tratamento exterior: “se sou tão horrível como dizem, se isto é inerente a minha condição humana, por que seguirei o caminho ‘certo’, se nada que faço é ‘certo’”? A criminalização, por conseguinte, vem, em grande parte, de um ódio contra si e do que este representa – e, principalmente, da análise azada de que a mudança é uma impossibilidade. O que vem asseverar esta análise é a conjuntura “ínsita” de seu viver que transcorre de sua particularidade. Ademais, vale a menção de que um dos maiores nomes do existencialismo, Jean-Paul Sartre, admite que há todo um conjunto de fatos que delimitam a situação do ser no mundo e sobre os quais não se pode interferir, afinal, já existiam antes que se aparecesse. Exemplifica-se esse comentário com os seguintes exemplos: a época de nascimento da pessoa, o lugar, a classe social, os pais e familiares etc.

Por fim, a poetisa Cecília Meireles incide sobre a frustração de viver sempre de uma mesma coisa, de uma insegurança de si e sobre a trágica trajetória de ser, ou melhor, de permanecer sendo de tal modo, em seu poema “Até quando terás, minha alma, esta doçura”. Realizado em 1995, em cada verso, o trágico mantém-se, e diz:

“Até quando terás, minha alma, esta doçura,
este dom de sofrer, este poder de amar,

a força de estar sempre – insegura – segura

como a flecha que segue a trajetória obscura,

fiel ao seu movimento, exata em seu lugar…?”

Tais indivíduos se decidirem continuar vivendo no caminho “certo”, viverão-no em uma “trajetória obscura”, relativa a mesma obscuridade do caminho “obscuro”; ou seja, do mundo do crime. O penoso é a inação que provoca para com uma busca que tenta achar seu eu como legítimo: se decidirem continuar a viver pelo certo ou pelo errado, estão ambos sujeitos ao ataque, ora na superfície, ora no rio: o almoço é iminente, e não encherá suas barrigas – a perna falhará. (A proposta deste texto, e reitero quantas vezes necessárias, não está sujeita a relativizar ou a “passar pano”, na linguagem popular, sobre aqueles que fazem atrocidades. Pelo contrário: a proposta é a de, ao compreender tal enfermo, avaliá-lo de forma correta e, acima de tudo, evitá-lo.)

João Paulo Duarte Marques da Cruz
João Paulo Duarte Marques da Cruz Estudante do Colégio CEI, apaixonado por literatura, cinema e política. E-mail katrinadmc@hotmail.com

O que acontece em Noronha, fica em Noronha

Anterior

FCP oferece oficinas de Choro

Próximo

Vocë pode gostar

Comentários

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *