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“Vim contar que matei minha filha, para que você não pense que estou maluca e para que me diga o que tenho que fazer”, alegou a empreendedora da boa cidadania, dos simétricos e bons valores morais, Aurora Rodríguez Carballeira, ao seu amigo e advogado José Botella Asensi. “Vim contar que matei minha filha, para que você não pense que estou maluca e para que me diga o que tenho que fazer”, alegou a assassina, manipuladora, eugenista e sádica, Aurora Rodríguez Carballeira, ao seu amigo e advogado José Botella Asensi. Cabe, destarte, a pergunta: qual das Auroras matou a filha? Antes, porém, em que pese a curiosidade dos leitores, é imprescindível uma introdução do trajeto da homicida e de sua relação com sua progenitora.

De acordo com a BBC News Brasil, “quando tinha 35 anos de idade, Aurora Rodríguez (..) concebeu mais que uma filha: traçou um plano (…) Aurora Rodríguez queria gerar e criar a filha em condições ideais e convertê-la na ‘mulher mais perfeita, que, como uma estátua humana, fosse o padrão, a medida da humanidade e a redentora final’, como ela diria posteriormente a seus psiquiatras”. Nesse ínterim, ao ficar grávida, Aurora resolve aplicar “uma série de técnicas que faziam parte da eugenia, sobre como levar a cabo uma boa gravidez e assegurar a geração de uma menina”, como avalia Carmen Domingo, autora do ensaio biográfico “Mi Querida Hija Hildegart”. A escritora Rosa Montero, ademais, afirma que Aurora “treinou-a desde o berço com mãos de ferro de uma domadora circense, até convertê-la em um exemplar anômalo e excepcional, uma pobre menina prodígio”. Numa faculdade intelectiva aguda, — no entanto, agudamente trágica —, Hildegart teve uma infância em demasia surpreendente: antes de chegar aos dois anos de idade, a garota já sabia ler, começando, posteriormente, a escrever aos três. Para além, aos oito anos, comunicava-se em inglês, francês e alemão. Segundo a reportagem da BBC News Brasil, “aos 13 anos, Hildegart Rodríguez já era formada com excelentes qualificações e, aos 14, começou a estudar Direito, com uma licença especial devido à sua pouca idade”. No que tange o teor dos temas, segundo Carmen Domingo, “o que a menina estudava eram temas concretos, pois tudo era encaminhado para que se tornasse uma superdotada para redimir a humanidade”. Nesse controle unilateral, Julián Besteiro, professor de Hildegart na universidade, revelou: “nos estudos, Hildegart é simplesmente formidável, mas esse fenômeno de ser tão ligada a sua mãe me evoca a imagem de um filhote de canguru preso na bolsa invisivel com o cordão umbilical intacto”. Em suma, conforme a declaração da própria moça ao jornalista Eduardo de Guzmán, autor do livro “Aurora de Sangre”, a jovem teve de “usar [a infância] toda para estudar sem descanso, dia e noite”.

A vultosa verdade é que, a partir de seus audazes valores, Aurora incorreu em uma acachapante teatralidade perfeita. Este fora, na realidade, o principal motivo do nascimento de sua filha. A necessidade de localizar o mal e objetificar-se como aquela a quem a criação da redentora final fosse sua responsabilidade, é, em verdade, uma dissimulação de suas mazelas interiores; ou seja, por assim dizer, e assim procedendo, ao pôr-se como messias, enfatiza-se como serpente. Atalho, pois, este conceito por reconhecer que coexistiam duas Auroras: uma completamente viva (a quem todos conheciam), que, no entanto, possuía uma morte aguardada; e outra meia-viva, a qual esperava sua totalidade no viver. E, assim, no instante em que precedia o assasinato, ambas as senhoras manifestavam-se rivais, andando, com passos finitos, em direção uma à outra, até que, logo então, entrelaçam-se os punhos e a face de uma ergue-se; do contrário, cai a da outra. A rigor, o vermelho do sangue da vencida contempla o cansaço de agir nas sombras; de não ser o que é; de ser, porém, o que se deve.

A âmbito social, tal teatralidade ocorre para com quase todos os países: os puritanos na velha “Nova Inglaterra”, caçando, metodicamente, as “bruxas”, a criação do conceito de raças entre humanos promulgada pelos naturalistas e antropólogos europeus, a frenologia (pseudociência criada para explicar o racismo com base na falsa premissa das diferentes morfologias cranianas dos indivíduos), a relação de jesuítas, padres e escravos no Brasil-colônia etc. Entre os citados, gostaria de expandir os horizontes sobre este último, tendo em conta o local de onde escrevo. O Brasil sempre foi um teatro de dimensões internacionais. Charles Darwin, por exemplo, mostrou-se, em seu relato “Viagem de um naturalista ao redor do mundo”, maravilhado diante das diversidades ambientais: “Era impossível se desejar coisa mais deliciosa do que passar assim algumas semanas num país tão magnífico. Na Inglaterra, qualquer pessoa apaixonada por ciências naturais sempre tem nos passeios alguma coisa que lhe atraia a atenção: mas aqui, na fertilidade de um clima como este, são tantos os atrativos que não se pode nem mesmo dar um passo sem lamentar a perda de uma novidade qualquer”. Todavia, ao deixar o território, mostrou-se de sentimento opositor ao que sentira dias antes em relação a natureza dos bichos; isto é: experimentara a natureza dos homens: “No dia 19 de agosto, finalmente deixamos as praias do Brasil. Agradeço a Deus e espero nunca visitar outra vez um país escravocrata. Até hoje, se ouço um grito longínquo, lembro com dolorosa nitidez do que senti quando passei por uma casa perto de Pernambuco. Ouvi os mais terríveis gemidos e suspeitei que algum pobre escravo estivesse sendo torturado, mas sabia que não havia nada que eu pudesse fazer, senti-me impotente como uma criança (…) Perto do Rio de Janeiro, morei em frente a uma velha senhora que guardava tarraxas para esmagar os dedos de suas escravas. Fiquei em uma casa onde um jovem mulato era diariamente e a cada hora maltratado, espancado e atormentado, de um modo suficiente para aniquilar o espírito do animal mais miserável. Vi um garotinho de seis ou sete anos de idade ser atingido três vezes na cabeça por um chicote de açoitar cavalos (antes que eu pudesse interferir) simplesmente por ter me alcançado um copo de água que não estava bem limpo (…) Imagine a probabilidade, sempre pairando sobre você, de sua esposa e seus pequenos filhos – coisas que pelo comando da natureza até mesmo os escravos clamam possuir – sendo separados de você e vendidos como animais ao primeiro comprador! Esses atos são praticados e mitigados por homens que professam amar o próximo como a si mesmos, acreditar em Deus e rezar para que Sua vontade seja feita na terra!”.

Há semanas que, calado, a ideia de um “ser superior” paira sobre mim e atormenta-me: como será possível? Como uma mulher de boa cidadania assassina a própria filha e se crê digna de tal nomenclatura? O diagnóstico exprimido pelo naturalista compactua-se decentemente ao caso de homicídio retratado acima; o que, em verdade, fizera-me mais afundado na angústia: como, durante gerações e gerações, pessoas, que se diziam boas, foram capazes de tantas atrocidades? O que me esclareceu o pensamento foi a frase ascorosa atribuída ao padre Antônio Vieira, um jesuíta do século XVII, que dizia: “Sem negros não há Pernambuco e sem Angola não há negros”. De modo igual, tais pessoas somente atuam como figuras de autoridade, pois, na procura de que outrem observem-nas como supernas e divinas, ateiam fogo, como crianças ávidas e carentes por um olhar para com elas, no que mais chama atenção; em outros termos, a mola-mestra do teatro é a audiência; por conseguinte, nunca se deve permitir uma audiência para as citadas peças macabras, pois é o que as faz ganhar palco; assim, conhecendo-nos como instância que peca, nunca que cura, esta é a maneira unívoca de evitar a crescente e enojosa “limpeza de sangue”.

Por fim, fiquemos com o que dissera, certa vez, um jovem filósofo suiço, (a quem a educação foi responsabilidade de um pastor protestante), Jean-Jacques Rousseau, em seu livro “Os devaneios do caminhante solitário”; assim consta: “Quanto a mim, quando desejei aprender, foi para saber e não para ensinar; sempre pensei que antes de se instruir os outros era necessário começar por saber o suficiente para si próprio, e de todos os estudos que na minha vida tentei fazer entre os homens, não há nenhum que não tivesse podido fazer numa ilha deserta para onde tivesse sido desterrado para o resto dos meus dias”.

João Paulo Duarte Marques da Cruz
João Paulo Duarte Marques da Cruz Estudante do Colégio CEI, apaixonado por literatura, cinema e política. E-mail katrinadmc@hotmail.com

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