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O cinema de François Ozon marcou presença na edição 2022 do Festival Varilux com a exibição de “Peter von Kant”, homenagem ao gigante do Novo Cinema Alemão, Reiner Werner Fassbinder. Adaptação livre para “As Lágrimas Amargas de Petra von Kant”, o filme de Ozon é a segunda produção de sua carreira a revisitar a obra do realizador alemão.

A primeira incursão é a adaptação para o cinema da peça “Gostas d’agua em pedras escaldantes”, em que o cineasta francês dá uma aula de enquadramento para ambientes fechados e direção de atores primorosa. Para “Peter von Kant”, o desafio seria: como refilmar o classicão de Fassbinder que parecia irretocável na interface cinema e teatro e interpretações marcantes de Margit Carstensen (Petra) e Hannah Schygulla (Karin)?

Ozon, um dos cineastas mais prolíficos do Cinema Francês Contemporâneo, felizmente não segue à risca o conceito de refilmagem no sentido de mera reprodução de uma obra icônica (como o remake de Steven Spielberg para “Amor, sublime amor”, de Robert Wise”) e faz do roteiro uma homenagem a um dos maiores cineastas de todos os tempos com mudanças e acréscimos que valorizam o conceitos de adaptação autônoma, sem comprometer a essência da obra original de 1972 numa sátira irônica à cultura das celebridades e aos jogos masculinos cruéis de amor e dor.

O cinema de Ozon é marcado pelo domínio dinâmico da narrativa e a composição autoral que proporciona charme e beleza aos seus filmes. Sua obra pode ser fruída em categorias distintas, pois não se limita a um estilo, preferência temática, estética ou modismos. Nesse sentido, assistimos produções que remetem ao cinema clássico no sentido de novas leituras para temas universais como “Angel”, “ Uma nova amiga”, “Frantz”, “O Refúgio e “Oito Mulheres”. Há o Ozon experimental, metalinguístico em filmes instigantes como “Sob a areia”, “Amor em 5 tempos”, “Dentro de casa”, “O tempo que resta” e “Ricky”. E o lado ousado e sensual em “Swimming pool – à beira da piscina”, “Jovem e bela” e “Verão de 85”.

Em “Peter von Kant”, é a vez do cinema referencial de Fassbinder e Douglas Sirk e a revisão do melodrama que aposta na troca de gênero dos personagens. Aqui, Kant (Denis Ménochet) é um cineasta autodestrutivo, caótico, com relações de codependência e que fuma Marlboro como o diretor alemão. Karin (Hannah Schygulla) agora é Amir (Khalil Gharbia), jovem ator aspirante e destruidor de lendas prepotentes.  A secretária e escrava Marlene (Irm Hermann) é Karl (em interpretação assombrosa de Stefan Crepon) e Sidonie (Katrin Schaake) é reinventada pelo talento de Isabelle Adjani. 

No Brasil, a peça “As lágrimas amargas de Petra von Kant” ganhou os palcos com montagem do Teatro dos Quatro e direção de Celso Nunes. Com Fernanda Montenegro e Renata Sorrah como protagonistas, a peça inspirou filmes, novas montagens e trabalhos acadêmicos nas artes cênicas. 

“Peter von Kant” abre janelas para outros trabalhos de Fassbinder, como a canção que tem como refrão “todo homem mata aquilo que ama” (que está em “Querelle”), a menção ao sombrio “A lei do mais forte” e o projeto de escrever sobre personagens femininas no pós-guerra alemão (“Maria Braun”, “Lola”, “Lili Marlene”).

“Peter von Kant” fechou com chave de ouro o Festival Varilux Cinema Francês em Belém e acena a possibilidade de ser exibido no circuito alternativo em sessões regulares.

José Augusto Pachêco
José Augusto Pachêco é jornalista, crítico de cinema com especialização em Imagem & Sociedade – Estudos sobre Cinema e mestre em Estudos Literários – Cinema e Literatura. Júri do Toró - 1º Festival Audiovisual Universitário de Belém, curadoria do Amazônia Doc e ministrante de palestras e cursos no Sesc Boulevard e Casa das Artes.

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