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O que vou explanar são fatos do meu tempo como aplicador da lei e do Direito.

A sociedade exige que o juiz seja um sacerdote em sua missão. O que para um cidadão comum não passa de mero deslize, para o juiz é um escândalo. Afinal de contas, a quem mais foi concedido mais será cobrado, diz a Bíblia.

O magistrado não pode gozar as delícias de um fim de tarde num barzinho, tomando chope. Vão logo dizer que estava bêbado e sem compostura. Se estiver numa cidade pequena, não pode dançar carnaval, nem torcer por seu time abrindo o coração e soltando palavrões como um mortal qualquer.

Não pode isso, não deve fazer aquilo etc. O poder, de certa maneira, isola.
Quando trabalhei em algumas cidades do interior do Estado do Pará, diversas vezes me aconteceram esses fatos: as pessoas tinham receio de se aproximar de mim, guardando, no mais das vezes, uma distância respeitosa.
Se a segurança pessoal permitia, pegava o tênis e saía para uma caminhada. Sempre sozinho.

Quando era convidado para algum aniversário e entrava na casa do anfitrião, os risos, as conversas, a música, quase tudo parava imediatamente, como se ali estivesse entrando o representante da censura, da chatice, o inimigo da alegria.

Aquilo muitas vezes me machucava, eu que sempre procurei ser autêntico, não fazer tipo e andar de peito aberto.

É lógico que sempre existiu gente que se empolgava com o poder e contrai a doença conhecida como “juizite”, a mãe da mediocridade, o câncer que embota o espírito.

Para esses cabe como uma luva a máxima do Marquês de Maricá: “Queres conhecer o Inácio? Dá-lhe um palácio”.

Mas, o exercício da magistratura não é aquela atividade chata, apática. Existe o lado ameno e quem não perdeu a humildade e ainda se considera como parte da humanidade, aproveita a ocasião para rir e relaxar.

Afinal de contas, apesar das diferenças de posições, de status, que a sociedade criou ali estão, frente a frente, seres humanos. Perante o Pai Eterno ninguém é melhor do que ninguém.

Era uma audiência muito tumultuada. Contestação, partes e advogados mal humorados, depoimentos tensos e mais outros ingredientes que faziam muito mal à minha hipertensão na tarde calorenta naquela cidade interiorana.
Tentava a todo custo conseguir uma conciliação, mas o coração do fazendeiro ali à minha frente parecia feito de granito. Era não e não.

Mandei servir água gelada e cafezinho para os litigantes e seus patronos. Foi um santo remédio.

-Tudo bem, doutor, vamos fazer o acordo!

Após nova batalha para chegarmos a um valor, felizmente o acionado concorda. Ia pagar ali, mesmo. Abriu a pasta, tirou o dinheiro e entregou para o peão.
Depois de contar o numerário o pobre homem olha para mim, tira dez reais estende a mão para mim e me diz:

-Taqui, doutor, pra sua cervejinha!

Levei um susto. A sala de audiências estava cheia de advogados e assistentes. Então aquele homem estava tentando comprar, corromper o juiz?

Com certeza viria uma ordem de prisão em flagrante.

Desci do pedestal, peguei o dinheiro, levantei, abri o bolso da camisa do peão e falei:

-Não precisa, não… pegue isso e compre umas cervejas e tome por mim… mas, não vá exagerar!

Quando a audiência acabou, o calor da tarde havia passado e minha pressão arterial estava como a de uma criança.

Nunca mais esqueci o fato.

*O artigo acima é de total responsabilidade do autor.

José Wilson Malheiros
Magistrado do Trabalho Aposentado, Advogado, Músico, Poeta, Compositor, Instrumentista, Professor, Jornalista, Diácono e Escritor.

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