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Victor foi meu colega de escola desde o primário.

Eu optei pelo Direito e ele foi estudar engenharia em São Paulo, onde se destacou e trabalhava numa multinacional.

Todos os anos ele tirava um mês de férias e nos encontrávamos em Santarém, para aliviar a saudade e rever nossos queridos.

Numa dessas ocasiões, ele foi mergulhar sozinho para pescar no lago do Mapiri e nunca mais voltou.

Quem sabe, foi laçado por uma sucuriju, que repartiu o banquete com as piracatingas.

O meu amigo foi presenteado pelo Criador com uma excelente memória.

Muitas ocorrências da mais tenra idade ele ainda recordava e sempre me contava, quando nos encontrávamos para conversar atualizar a amizade.

Vamos aos fatos.

Fernão Gonçalves Churrichão, o Farroupim, que passou à História como D. Fuas Roupinho, foi um guerreiro nobre português do século XII.

Existe um quadro muito famoso e venerado nos meios católicos, que mostra esse nobre lusitano perseguindo um cervo, por longas distâncias, até que, ao chegarem na beira de um precipício a presa se lança no vazio.

Fatalmente o cavalo do guerreiro, pela velocidade que galopava, iria precipitar-se no abismo e a morte era certa.

Victor estava com mais ou menos três anos e esse quadro estava fixado no quarto de dormir da família.

Quase toda noite o menino pedia para a mãe repetir a história e ela, com muita paciência, contava de novo.

O garoto olhava para essa gravura com um certo receio, principalmente quando a narrativa da mãe chegava no momento em que o cavaleiro, prestes a sucumbir no precipício e vendo a morte de frente, lança um grito de pavor e de fé:

– Valei-me, Nossa Senhora de Nazaré!…

A caça, repito, atirou-se no despenhadeiro e, num verdadeiro milagre, o cavalo estanca a poucos centímetros da morte certa.

A rede do Victor ficava encostada com a cama de casal dos seus pais.

Não havia luz elétrica, naquela época, na pérola do Tapajos, a pequena cidade onde morávamos, no interior do Pará.

O quarto de dormir da família dele ficava iluminado só com a chama insuficiente de um candeeiro, que logo era apagado para chamar o sono.

Só a luz da lua penetrava pelas vidraças.

Se lá fora o luar era lindo, dentro do quarto aumentava as sombras lúgubres na parede.

Depois de escutar a história da mãe pela vigésima vez, o menino custava a dormir e ficava na rede de olhos arregalados na direção do quadro, que dava medo.

Diziam que aquele veado era o próprio demônio, que queria matar o cavaleiro cristão.

A escuridão ao redor, incitava as fantasias de criança.

Certa madrugada, Victor acordou e olhou para o cenário que arrepiava, fixado na parede do quarto.

Para seu espanto, o animal não estava mais no cenário.

Na cama ao lado, os pais dormiam em paz.

E ele, apavorado, tinha certeza de que o cervo tinha saído da parede e estava agora debaixo da própria rede.

Criou  coragem e olhou para o chão.

Lá estava o cervo, fitando calmamente o garoto, ruminando e parecia até que já era um amigo.

Isso aconteceu diversas vezes, sempre quando todos já estavam dormindo.

Com o tempo, parece que Victor foi  se acostumando e nunca contou para ninguém.

O menino  cresceu e as visões sumiram.

E o quadro? Bem… sumiu quando os pais do meu amigo faleceram.

-Valei-me Nossa Senhora de Nazaré!…

José Wilson Malheiros
Magistrado do Trabalho Aposentado, Advogado, Músico, Poeta, Compositor, Instrumentista, Professor, Jornalista, Diácono e Escritor.

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