Há algumas semanas uma discussão foi reacendida na Internet. Tudo começou quando uma moça fez um vídeo no TikTok pedindo energicamente para que jogos tivessem um “modo fácil”. Segundo ela, tudo que ela queria era curtir uma boa história interativa, e não ter que praticar horas para vencer um chefão. Como exemplo, a autora do vídeo citava “Hollow Knight” (2017), um caso típico de masocore. Foi o suficiente para ressuscitar o assunto, velho conhecido de quem trabalha com games: todo jogo deve ter um modo fácil?
A resposta lógica parece ser “sim”. Afinal, o tal “modo fácil” seria, como o nome sugere, uma opção, mantendo o “modo normal”, ou mesmo os mais difíceis, para quem estiver disposto a encará-los. Além de permitir que as pessoas apenas experimentem uma boa história interativa (como a própria garota do vídeo diz,), o modo fácil também poupa bastante tempo, já que torna o progresso no jogo mais rápido e exige que o jogador ou a jogadora dedique menos tempo para aprender mecânicas e padrões do game.
Essa inclusive é uma opção já explorada com sucesso em diversos jogos. “Celeste” (2018), que já é figurinha carimbada aqui na coluna, e outro exemplo de masocore, tem um dos melhores “modos fáceis” de que se tem notícia. Chamado de “assist mode” (algo como “modo assistido”), essa opção permite que você regule os parâmetros do jogo de forma a torná-lo mais acessível. É possível reduzir a velocidade, tornar-se invencível ou ter uma reserva infinita de energia, necessária para “pular”, por exemplo. E o motivo pelo qual esse é um bom exemplo é que ele altera o design do jogo o mínimo possível. Os momentos desafiadores seguirão sendo mais difíceis que os demais – ainda que não tão punitivos como no modo normal – e a história segue sendo apresentada de forma interativa e envolvente.
Um outro motivo pelo qual gosto de defender a existência de modos fáceis é que eles servem para combater uma das principais fontes de toxicidade na comunidade gamer. A ideia de que “se você não consegue jogar tal game, você nem é um gamer” ou que de que a dificuldade exagerada é algo que faz um “verdadeiro jogador” me parece, além de risível, prejudicial. Seja como arte, mídia ou entretenimento, jogos não têm, em nenhum momento, a intenção de ser uma seita para iniciados que exija um ritual para seu ingresso. Games existem para que possamos aprender, nos divertir, nos emocionar, nos conhecermos e socializarmos.
Portanto, o típico “git gud” (de “get good”, ou “fique bom”, em tradução livre do inglês), gritado por alguns para quem reclama quando um jogo é excessivamente punitivo, é semelhante ao cara machista que diz ao colega nem tão habilidoso do futebol que ele “joga feito uma menina”. Ou a pessoa super sarada que destrata quem não está em forma numa academia. Embora as motivações sejam (às vezes!) diferentes, a ideia por trás é a mesma: quem diz isso pensa que esse ambiente deve ser reservado aos que são “tão bons” quanto ela. É uma tentativa forçada de exclusivismo em um ambiente que, na minha opinião, deveria ser, antes de mais nada, inclusivo. O “modo fácil” é um jeito de mostrar para essa gente que games são pra todos, quer eles gostem ou não.
Mas, por outro lado, nem todo jogo é como Celeste. O exemplo dado pelo vídeo que começou a discussão foi Hollow Knight, e é aí onde a coisa começa se complexificar. Trata-se de um jogo com um dos designs mais complexos dos últimos tempos – fiz uma análise completa nesse texto, em inglês. Mas para entender como seria difícil criar um “modo fácil”, pensemos num exemplo. Digamos que esse modo poderia ser implementado tornando inimigos mais fracos. Eles seriam derrotados com poucos golpes. Parece um jeito simples de acelerar a progressão no jogo e ainda garantir que a jogadora ou jogador tenha acesso a todo o conteúdo, certo? Porém, há muito mais que uma história linear num jogo como Hollow Knight:
- O jogo é não-linear e todo o mapa pode ser explorado por meio de partes que se interconectam (como é típico nesse gênero, chamado “metroidvania”). O que garante que você jamais terá acesso a uma área da qual ainda não possa sair, ou a inimigos que ainda não possa combater, é justamente a progressão de dificuldade e as restrições impostas em cada uma das conexões entre os níveis. Ao tornar os inimigos mais frágeis, será que esse equilíbrio se manteria?
- Uma das principais características do jogo é o sistema de amuletos, que faz com que você mude diversas características do personagem pra determinadas situações, seja uma batalha ou explorar algum lugar. Se vencer inimigos deixa de depender desse sistema, ele deixa de fazer sentido para o jogo. E sem ele, áreas inteiras – visitadas apenas para se ter acesso a alguns amuletos – perdem seu significado e funcionalidade.
- A história do jogo é descoberta quanto mais se explora ou investiga o ambiente. Algumas áreas não contêm poderes ou amuletos, mas recompensam o jogador com partes da história. Por serem áreas opcionais e com inimigos normalmente difíceis, elas trazem informações que, no começo do jogo, seriam quase como spoilers. Como manter isso “escondido” do jogador sem utilizar curvas de dificuldade ou acesso?
São apenas três exemplos, mas que já deixam claro o quanto o jogo funciona como um ecossistema, de forma que a remoção (ou adição) de qualquer elemento pode acabar por destruir um delicadíssimo equilíbrio que, neste caso, é o que torna o jogo a obra de mestre que ele é. Várias outras soluções poderiam ser analisadas, assim como suas consequências, mas o fato é que, nesse caso, implantar um “modo fácil” corresponde a quase criar um novo jogo. E talvez seja por isso que os desenvolvedores optaram por não o fazer. “Sekiro: Shadows die twice” (2019) é um outro exemplo semelhante, embora de menor complexidade: a experiência da história está indissociavelmente ligada à experiência da dificuldade e do enfrentamento de inimigos. A alteração de um impacta no outro de formas que, talvez, firam a integridade da obra.
E aí surge um outro aspecto, que gera o “dilema da dificuldade” para quem faz games: criar o que se quer sob o risco de não ser para todo mundo ou fazer para todo mundo abrindo mão do que se quer criar?
Pense em outras mídias. Quando se faz um filme de terror, por exemplo, desde o começo se sabe que não é para qualquer plateia. O mesmo ocorre se o filme tiver cenas de violência ou sexo, por exemplo: automaticamente, a classificação indicativa o tornará inadequado para “toda a família”. Nem por isso, criadores deixam de realizar obras que, embora sejam mais restritas em termos de público-alvo, seguem sendo grandes obras de arte, que influenciaram e influenciam outros criadores até hoje. É claro que também existem obras que buscam ser adequadas ou “trazer algo” para cada tipo de pessoa, agradar multidões. São os casos dos filmes de super-heróis, por exemplo. Embora máquinas de fazer dinheiro, dificilmente rompem com fórmulas e convenções engessadas, o que também os torna menos influentes e importantes para futuras criações. Assim como existem obras de nicho sem qualquer centelha de inspiração.
A questão principal do dilema é a liberdade criativa: às vezes, o que o game designer deseja realizar só é possível graças a um sistema complexo que, vez por outra, envolve alta dificuldade e impossibilita modos fáceis. Nesses casos, creio que seja importante entender que, embora infelizmente o jogo se torne menos acessível, ele faz parte de um conceito complexo que, mesmo sem ser ideal para mim, por exemplo, talvez possa acabar servindo para influenciar os jogos que eu jogarei em poucos anos. Ou mesmo me inspirar a decidir enfrentar uma curva de aprendizagem mais acentuada. Foi, aliás, meu caso pessoal com Hollow Knight.
Isso tudo dito, me parece que o equilíbrio entre ter ou não ter um modo fácil é tão delicado quanto o complexo balanceamento das muitas variáveis de um game. Sempre que for possível ter um modo fácil sem que o conceito principal do jogo seja prejudicado, ele deveria, sim, estar disponível. A meu ver, quanto mais gente jogando, melhor! Porém pode haver casos em que o modo fácil se torna, valha o trocadilho, difícil – ou mesmo impossível – de se desenvolver. Aí, talvez valha apenas considerar que aquele jogo não seja para mim. Excepcionalmente, assistir a experiência de streamers e youtubers pode ser uma boa ideia se a história te interessa tanto.
Mas o mais legal é que, para cada jogo que talvez não seja muito a nossa praia, haverá outras centenas que são exatamente como a gente gosta, prontos para serem jogados. Inclusive alguns que são, basicamente, histórias interativas, como “Firewatch” (2016), “What remains of Edith Finch” (2017) ,“Kentucky Route Zero” (2013) ou o maravilhoso “Disco Elysium” (2019). O mais legal sobre vídeo game é que sempre haverá espaço para todas e todos. E para quem pensa diferente:“git gud”!
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