0

Tornei a encontrar meu velho amigo Conta Estrelas na praça da Matriz.

Perto das oito da noite, lá vinha ele com uma cambada de Jaraqui.

Ao me ver, foi logo dizendo:

– Mano, eu tava pensando justo em ti. Olha ali como a praia na frente da cidade já tá grande. Vamo descê até lá. Eu faço uma fogueira e vou assando já esses peixe pra gente comê. Tu só leva uma cachacinha.

Eu tenho uma estória pai dégua pra te contar.

Enquanto o Jaraqui assava, a nossa piracaia improvisada serviu de motivação.

Mais uma vez ele me recomendou que se fosse escrever o que ele estava contando, que desse um polimento nas palavras.

Tudo bem, meu amigo Conta Estrelas. Aqui vai o que você me contou.

As palavras, dentro do possível, estão engraxadas.

Diziam que Giordana era louca.

Descendente de italianos e de família abastada, foi estudar canto lírico na Itália e apaixonou-se pelo professor. Descobriu depois que ele era homossexual.

Mesmo assim casaram-se e ele veio com a aluna para a Amazônia.

Quando aqui chegou o professor apaixonou-se por um vaqueiro e abandonou a música e foram viver juntos na várzea, plantando juta, milho e feijão.

Com o tempo Giordana começou a ficar perturbada.

Tinha manias de suicídio e frequentemente vinham visões da falecida avó, Mamma Lucia. A situação parecia insuportável.

Era tarde de sol de uma quarta-feira quando Giordana mandou que viessem alguns carregadores do trapiche e ordenou que levassem o piano de cauda para bordo do Toscanini, o barco-motor da família.

Banhou-se, vestiu-se com a melhor roupa de festa, como se fosse dar um recital de ópera, saiu de casa e embarcou.

Despachou os moços de convés e o cozinheiro. Levou apenas o piloto e o maquinista.

O Toscanini estava atracado no velho trapiche de Santarém, rangendo e balançando, ninado pela maresia da tarde e conversando, no seu vernáculo fluvial com os outros barcos.

Giordana determina:

– Desatraca logo essa embarcação. Liga as máquinas. Vamos sair ao largo, lá por onde o rio cava o maior perau.

Quando estavam com um bom tempo de viagem, Tapajós acima, os tripulantes começam a ficar temerosos, como se pressentissem que algo terrível se aproximava do Toscanini.

– Patroa, pra onde é que a gente vai?…Olhe o combustíver, já tá acabando. Nós num abastecemo antes da viage.

Ela responde:

– Toca pra frente. Deixa que o danado vá cortando água. Vai mais lento que eu quero apreciar a paisagem.

A tarde já estava madura.

Dentro de algum tempo o barco-motor começa a entrar no Lago Verde de Alter-do-Chão e reduz ainda mais a marcha, quase parando.

É hora da procissão do Sairé. Naquele tempo ainda se fazia o cortejo e a comemoração tradicionais.

De bordo da embarcação já se consegue enxergar o povo seguindo pela rua da frente da vila.

No porão, o barulho das máquinas, parece zoada de metralhadora.

É para lá que Giordana se dirige, descendo a escada e pisando macio como a onça quando está caçando.

Ela sente um peso estranho nos ombros. Está em transe.

NA TERRA FIRME O “ARCO DO ÇAIRÉ”, ORNADO COM FITAS, ESPELHINHOS, FRUTAS ETC, VAI SENDO LEVADO PELOS CABOCLOS E PELAS CANTORIAS NAS VIELAS DE ALTER-DO-CHÃO…

 As palavras da falecida avó vão fazendo eco nos ouvidos:

 – Cuidado com os homens. Eles nos magoam. A maioria não presta!

Quando chega ao porão o maquinista está sentado, de costas, sem camisa, pitando um tauari porronca e nada percebe.

NAS MARGENS DO LAGO O CANTO DO ÇAIRÉ, NA SUA TRISTEZA E MONOTONIA, MAIS PARECE UM LAMENTO.

Ela aproxima-se, retira da bolsa uma faca e arpoa repetidas vezes as costas do caboclo. Ele nem chega a gemer. Desmancha-se ali mesmo, mergulhado em sangue.

Lambe a faca e volta pela escada, em busca do tripulante seguinte.

A voz da falecida Mamma Lucia insiste no refrão:

– Cuidado com os homens. Eles nos magoam. A maioria não presta!

E O CANTO DO SAIRÉ CONTINUAVA:

          “PECAÇU TINGA UUIÉ

           PECAÇU TINGA UUIÉ

           URUREMEAPÉ YURU PÉ

           YANÉ YARA TUPANA RENUNDÉ

           YANÉ YARA TUPANA RENUNDÉ”

O piloto estava concentrado na direção do barco e na longínqua melodia da procissão.

Giordana vem por trás e sarja bem na veia jugular, como via fazerem com os bois no curro, desde menina.

O homem desmoronou, com uma torneira esguichando vermelho do pescoço.

Quando ela olha para o lado enxerga Mamma Lucia materializada, encostada no piano, sorrindo e falando:

– Parabéns!

Tenta caminhar na direção da avó.

Mamma Lucia plasmou para si uma forma animalesca. Transformou-se numa onça preta. Licantropia pura.

Os olhos flamejam ódio, fogo e maldade.

Quando Giordana chega perto, ouve-se um rugido.

A aparição virou uma bruxa velha com mais de cem anos e vai se evaporando, às gargalhadas, deixando no ambiente um cheiro de podridão e de enxofre.

A PROCISSÃO VAI SE ESPREGUIÇANDO E DESAPARECE, POUCO A POUCO, NA ESQUINA… MAS AINDA SE PODE ESCUTAR O CANTO CHORADO:

 “ORATÓRIO ARARUPÍ YANÉ YARA TUPANA NAPECANA PUPÉ…”

A noite vem chegando com os seus cabelos negros: espalha luto e a pesada vibração da tragédia ao redor do Toscanini.

Giordana tem as melenas desgrenhadas, as mãos e as vestes lambuzadas de sangue.

Senta-se ao piano e abre a partitura.

O papel corrupiou no vento e foi pousar nos vitrais da superfície das águas de um verde soturno, àquela hora da boca da noite.

O lago sorveu lentamente a música incrustada no papel, sem indigestão, porque ele próprio também é feito de melodias.

O peso nos ombros sumiu. A sensação é de relaxamento. O transe vai se acalmando.

Entre lágrimas e gargalhadas ela começa a tocar e a cantar, de cor, uma das árias de La Traviatta de Verdi: “Libiamo, ne lieti calici”.

O Toscanini é o barco de uma vida.

Agora vagueia sem leme ao capricho da brisa que acalenta o Lago Verde de Alter-do-Chão.

Ninguém sabe onde nem quando irá parar essa embarcação…

Os anos se passaram…

Até hoje, segundo garantem algumas pessoas do lugar, quem navega nas noites sem lua pelas proximidades de Alter, pede a Deus para não encontrar um barco-motor cheio de luzes e abandonado no levar da correnteza.

Leva a bordo uma linda mulher cantando e tocando ao piano harmonias tão cheias de tristeza e de encanto, que têm feito muita gente se lançar n’água, sem mais nem menos, para tentar chegar até lá.

Quem consegue alcançar e entrar na embarcação acaba desaparecendo, junto com ela, no oco da noite, para nunca mais ser visto.

Muitas pessoas tentam alcançar o barco a nado e perecem afogadas, pelo caminho, sem conseguir alcançar o Toscanini.

Os mais cautelosos passam ao largo e não se deixam iludir pela claridade desse barco das ilusões e nem pelo fascínio da soprano e das melodias do piano macabro.

É a maldição de mais um barco fantasma escrevendo outra página no livro do imaginário da Amazônia…

José Wilson Malheiros
Magistrado do Trabalho Aposentado, Advogado, Músico, Poeta, Compositor, Instrumentista, Professor, Jornalista, Diácono e Escritor.

Fim da linha

Anterior

A direita em choque

Próximo

Você pode gostar

Comentários