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Em um dos processos eleitorais mais ambiciosos e controversos da história recente, o México realizou no último domingo, 1º de junho sua primeira eleição direta para a escolha de membros do Poder Judiciário. Pela primeira vez, juízes e magistrados, incluindo os nove ministros da Suprema Corte, foram escolhidos por voto popular, em meio a promessas de democratização da Justiça e acusações de tentativa de captura institucional por parte do partido governista Morena.

Ao todo, mais de 2.600 cargos judiciais estavam em disputa, com mais de 7.700 candidatos concorrendo, em uma eleição considerada inédita entre as democracias globais. A mudança, sancionada no final do mandato de Andrés Manuel López Obrador e implementada sob o governo de sua sucessora, Claudia Sheinbaum, transformou um sistema antes baseado em nomeações técnicas em uma disputa popular aberta.

Apesar do alcance da reforma, a participação popular foi limitada: apenas 13% do eleitorado compareceu às urnas, segundo o Instituto Nacional Eleitoral (INE). O resultado preliminar para a Suprema Corte, divulgado nesta terça-feira, 3 de maio, indica uma maioria de juízes ligados ao partido Morena entre os nove mais votados – cinco mulheres e quatro homens – todos indicados em listas distribuídas por operativos do partido nas semanas que antecederam a votação.

Defensores da medida, especialmente integrantes do Morena, argumentam que o novo modelo amplia a legitimidade do Judiciário e combate a corrupção estrutural que há décadas assola a Justiça mexicana. “Queremos juízes que respondam ao povo, não a interesses ocultos”, afirmou o presidente emérito López Obrador, que votou no estado de Chiapas e celebrou o processo como um avanço democrático.

No entanto, a eleição gerou forte reação de juristas, acadêmicos e oposição política, que denunciam riscos à independência judicial e à integridade institucional do país. Segundo Azul Aguiar Aguilar, pesquisador da Universidade ITESO, “o que estamos presenciando é a captura da Suprema Corte por um partido político”. Três dos juízes eleitos já atuavam como magistrados nomeados por AMLO, enquanto outra se apresentou como “fundadora orgulhosa do Morena” em sua campanha.

Além disso, a eleição levantou preocupações quanto à influência do crime organizado no processo, devido à fragilidade dos filtros técnicos e à ausência de regras rígidas sobre financiamento de campanha. Os candidatos estavam proibidos de utilizar recursos públicos ou veicular propaganda paga, o que, segundo especialistas, favoreceu candidatos com maior poder aquisitivo ou visibilidade nas redes sociais.

O pleito envolveu uma complexa logística. Em estados como Durango, havia 49 candidatos disputando 49 cargos, gerando confusão entre os eleitores e atraso na apuração. Os votos foram em papel e contados manualmente.

Cada cidadão recebeu seis cédulas distintas, identificadas por cores específicas para cada instância judicial: roxo para a Suprema Corte, azul-marinho para a câmara superior do Tribunal Eleitoral, salmão para as câmaras regionais, rosa para os tribunais de apelação, amarelo para os juízes distritais e turquesa para o novo tribunal disciplinar, responsável por fiscalizar os demais.

A complexidade da votação reflete o tamanho do desafio. Somente para a Suprema Corte, 64 candidatos disputam nove vagas, tornando inviável que o eleitor médio conheça o histórico e as propostas de todos. A votação é individual para cada cargo, e as listas trazem dezenas de nomes desconhecidos do grande público.

Embora o governo tenha anunciado que a reforma traria mais espaço para minorias e povos indígenas, que representam cerca de 20% da população mexicana, as exigências mínimas para concorrer (formação universitária em Direito, cinco anos de experiência e bom desempenho acadêmico) continuam a excluir amplamente esses grupos, especialmente nas regiões mais pobres do país.

Um exemplo é o de Camelia Gaspar Martínez, advogada indígena zapoteca de 38 anos, candidata a uma vaga no tribunal regional de Xalapa, responsável por sete estados do sul e sudeste. Sem apoio institucional ou financiamento público, ela percorreu milhares de quilômetros com recursos próprios. Em muitas comunidades que visitou, era a única candidata a comparecer presencialmente.

Camelia poderá se tornar a primeira mulher indígena a ocupar um cargo de alto escalão no Judiciário mexicano. Mas, para a magistrada Otálora, a ausência de cotas obrigatórias para indígenas compromete a efetiva representatividade. 

O processo deste ano contempla apenas cerca de metade do Judiciário mexicano. A outra metade deverá ser eleita em 2027, conforme previsto na nova legislação. A expectativa é que o impacto institucional da reforma seja duradouro, com implicações diretas sobre a atuação da Suprema Corte, do Ministério Público e das cortes estaduais e federais.

Para analistas latino-americanos, a iniciativa mexicana pode inspirar debates semelhantes na região, mas também serve de alerta. O equilíbrio entre controle popular e tecnocracia judicial, dizem, deve ser manejado com extremo cuidado, sobretudo em democracias fragilizadas por desigualdades e pela criminalidade organizada.

Gabriella Florenzano
Cantora, cineasta, comunicóloga, doutoranda em ciência e tecnologia das artes, professora, atleta amadora – não necessariamente nesta mesma ordem. Viaja pelo mundo e na maionese.

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