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A Justiça Federal determinou, na última terça-feira, 30 de abril, que a União inicie, em caráter de urgência, o fornecimento regular de água potável a povos indígenas dos municípios de Itaituba, Aveiro, Jacareacanga, Novo Progresso e Trairão, no sudoeste do Pará. A decisão atende a um pedido do Ministério Público Federal (MPF) diante da crise humanitária gerada pela seca extrema e pela contaminação das águas por mercúrio, resquício direto da mineração ilegal que avança há anos sobre os territórios tradicionais da região.

A ordem judicial, emitida nos autos do processo nº 1003169-83.2024.4.01.3908, determina que o abastecimento seja mensal, a cargo do Distrito Sanitário Especial Indígena (Dsei) Tapajós, e realizado por meio de caminhões-pipa, galões ou outros meios adequados. A distribuição deverá ocorrer até o dia 10 de cada mês, sob pena de multa diária de R$ 1 mil, limitada a R$ 100 mil, caso haja descumprimento.

Relatórios oficiais da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), vinculada ao Ministério da Saúde, reconhecem a gravidade da situação. Comunidades indígenas da região vêm consumindo água de igarapés e rios contaminados por resíduos tóxicos, principalmente mercúrio, elemento amplamente utilizado no garimpo ilegal de ouro. A ingestão dessa água, ou de peixes contaminados por ela, tem levado ao aumento de doenças como diarreia, problemas neurológicos e até prejuízos cognitivos severos entre crianças.

Em destaque, a aldeia Sawré Aboy registrou contaminação por mercúrio em 87,5% dos indígenas testados, conforme estudos citados na ação movida pelo MPF. Os impactos extrapolam a saúde física: o órgão alertou que a exposição prolongada à substância compromete o desenvolvimento psicossocial das novas gerações, inviabilizando o futuro de povos inteiros.

Em 2024, a Amazônia enfrentou uma das secas mais severas da história. Com o rebaixamento drástico dos níveis dos rios, várias aldeias ficaram isoladas e com o abastecimento de água ainda mais prejudicado. As imagens da região, como a que uma draga de garimpo aparece encalhada em um leito de rio seco, registrada pelo Coletivo Audiovisual Wakoborũn, são o retrato do colapso hídrico e ambiental vivido por essas populações.

A estiagem, por si só já grave, torna-se catastrófica quando somada à poluição desenfreada provocada pela mineração predatória. A presença das dragas de garimpo em rios antes cristalinos transformou cursos d’água em canais de doença e degradação.

Embora o problema esteja documentado por órgãos do próprio governo, nenhuma ação concreta e de curto prazo havia sido tomada até o momento. Conforme perícia anexada à ação judicial, o orçamento per capita do Dsei Rio Tapajós caiu 87% entre 2014 e 2024. Um plano de implantação de sistemas de abastecimento foi apresentado, com previsão de conclusão apenas em 2027 — uma solução considerada tardia e ineficaz diante da urgência dos fatos.

Segundo o MPF, ao ritmo atual, seriam necessários 21 anos para implementar sistemas adequados de abastecimento de água em todas as aldeias da região. A Justiça rejeitou esse planejamento como “insuficiente para resguardar o direito à saúde e à vida”.

A decisão judicial é, sem dúvidas, uma vitória significativa dos povos indígenas da bacia do Tapajós. No entanto, ela também revela a profunda desigualdade estrutural que define a relação entre o Estado brasileiro e os territórios tradicionais. Em pleno século XXI, ainda é preciso recorrer à Justiça para garantir o acesso ao mais elementar dos direitos: a água potável.

A crise hídrica no sudoeste do Pará não é apenas consequência da variabilidade climática. Ela é expressão direta de um modelo de ocupação territorial que privilegia atividades econômicas ilegais e ignora a governança ambiental. A negligência com a saúde indígena é parte desse mesmo modelo, que avança sobre a floresta à custa de seus habitantes originários.

Para além da distribuição emergencial de água, o caso exige medidas estruturais: responsabilização das atividades ilegais de garimpo, recuperação ambiental, recomposição orçamentária do subsistema de saúde indígena e respeito às decisões autônomas das comunidades sobre seus modos de vida.

A liminar concedida pela Justiça Federal é um passo. Mas o caminho até o respeito pleno aos direitos dos povos indígenas ainda está longe de ser trilhado.

Foto: Coletivo Audiovisual Wakoborũn (2024)

Gabriella Florenzano
Cantora, cineasta, comunicóloga, doutoranda em ciência e tecnologia das artes, professora, atleta amadora – não necessariamente nesta mesma ordem. Viaja pelo mundo e na maionese.

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