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Eu tinha um amigo contador de estórias.

Ele me conhecia desde quando eu ainda era criança.

Vou chama-lo aqui de Conta Estrelas. Dizia-se que ele era um sonhador. Passava as madrugadas contando estrelas, a sonhar com a amada imaginária, que nunca chegava.

Era meu amigo de infância. Quando contava suas estórias, falava devagar, com gestos mímicos que ilustravam a narrativa.

Ficávamos sentados, na boca da noite, apreciando o vento ameno da orla tapajônica. Sempre havia o que assuntar.

Quando narrava seus acontecidos, sempre me pedia:

  • Sumano, se tu fores passar adiante isso que te digo, por favor dá um polimento nas minhas palavras que são por demais acabocadas.

Eu nunca concordei, mas faço a vontade dele.

Uma das narrativas que o meu amigo Conta Estrelas me contou, foi esta.

Ele conheceu uma jovem de nome Emerenciana. Ela estava com sete anos e viajava com os pais num barco motor da linha, abarrotado de gente, que saía de Santarém com destino a Óbidos.

Ao atravessarem o rio Amazonas, numa noite vazia de estrelas, eles pegaram um temporal dos mais enfezados.

Uma enorme tora de madeira que vinha descaindo, bubuiando na escuridão, bateu forte e furou o casco da embarcação, que começou logo a fazer água em um trecho do alto rio, de onde não se divisava nenhuma das margens.

As ondas beberam quase todo mundo e as piranhas ficaram fartas.

Três dias após, a menina foi encontrada, chorando, na praia de um boiadouro, onde havia um tabuleiro de desova com as covas ainda cheias de ovos de tracajá.

Desse dia em diante Emerenciana nunca mais foi a mesma.

Na hora do naufrágio ela desmaiou e um vulto a levou para as profundezas do rio, onde diziam existir uma Catedral com escadarias e paredes de cristal transparente, móveis de ouro, prata e pedras preciosas.

Ali, pratos, copos, talheres e outros utensílios eram feitos de turmalinas, diamantes, ametistas, topázios, amazonitas, jaspe e mais uma infinidade de outras joias da natureza.

Ao ingressar na Catedral submersa, Emerenciana viu logo na frente, uma mesa comprida que parecia um altar, ornada com toalhas de ouro e alumiada com sete castiçais que transmitiam luzes de ofuscar.

Numa outra mesa ao lado, uma variedade de frutas tropicais: atas, sapotilhas, taperebás, cupuaçus, bacuris, pajurás, laranjas, bananas, pupunhas, ingás, abacaxis e outras tantas.

Os habitantes desse mundo debaixo d’água diziam ser descendentes dos Atlantes e das Amazonas. Mas só se comunicavam com ela através do pensamento.

Um homem barbado, com voz de barítono e trajando uma espécie de Toga, advertiu-a para não triscar em nada, sem autorização, caso contrário iria perder a confiança dos seres que pretendiam trabalhar com ela.

Chovia do teto uma música divina. Alguém executava a Tocata em ré menor, de J.S Bach num órgão de igreja.

Não teve medo. A egrégora do lugar transmitia uma sensação de paz profunda. Sentiu um impulso quase irresistível de permanecer para sempre naquele paraíso.

O homem de barba, adivinhando os pensamentos da visitante, avisou que ela, se quisesse, poderia viver ali até no máximo sete meses.

Depois, teria de regressar e passar sete meses na terra, voltar ao fundo do rio para nova temporada e assim sucessivamente, já que seu aparelho fisiológico não era adaptado para ficar de maneira definitiva naquele ambiente.

Ouviu uma ordem mental dizendo que o tempo da visita estava esgotado.

Então foi colocada numa espécie de carruagem puxada por peixes enormes e boiou na superfície da beira d’água, pertinho do lugar onde foi encontrada.

Antes de partir, no entanto, outra determinação mental. Teria que estar presente, de quatorze em quatorze dias na beira do rio para fazer contato com os seres daquele mundo e receber instruções, poderes etc.

Tinha sido escolhida para ajudar os semelhantes.

Uns dizem que foi a mãe d’água que a deixou na praia.

Outros afirmam que foi o tucuxi e tem gente que até fala em milagre.

A verdade é que não se sabe como a menina escapou e foi estancar na areia, em terra firme.

Quem a encontrou, após o naufrágio, foram pescadores de pirarucu que por ali passavam.

O fachiador não conseguiu explicar quem guiou sua mão para apontar com o pau-de-facho na direção da menina.

Nesse momento todos largaram sararacas e zagaias nas montarias e começaram a resgatá-la, deixando-a no colégio das freiras, como órfã.

Daí em diante deu de se passar com ela um monte de coisas consideradas estranhas.

Pessoas habituadas às crendices e a ver o sobrenatural em tudo o que não podiam compreender de imediato, costumavam dizer que, de tempos em tempos, em noites de luar cheio, ela andava dormindo, ia sozinha à beira do rio e afundava nas costas de um peixe-boi, para visitar a catedral.

Ninguém sabia dizer como ela conseguia escapulir do orfanato, nessas ocasiões.

Quando entrava em transe era sempre à noite, na beira do rio, recostada numa pedra grande. Parecia dormir e os músculos quedavam-se, relaxados. A respiração quase se escondia. Captava uma total serenidade e saía do corpo físico. Passava a enxergar, de cima, o próprio corpo sentado na praia, com a paisagem enluarada em volta.

Em uma das raras oportunidades em que se dispôs a falar do assunto, ela contou que durante essa espécie de madorna enxergava e sentia uma luz muito forte espalhando bondade e expelindo fluídos curativos sobre o ambiente.

Mas os presentes não podiam ver. Apenas absorviam a tranquilidade derramada no ar, aspirando um leve perfume de açucena.

O povo imaginava que nessas ocasiões Emerenciana recebia uma entidade que tomava a formatura de uma garça luminosa.

Algumas pessoas chegavam ao extremo de fantasiar e afirmar que já tinham visto a ave translúcida.

Durante o transe da curadora as pessoas à sua volta ficavam rezando.

O povo humilde chegava de todas as localidades. A pé, de motor-de-popa, jacumã ou barco a vela. Alguns choravam, só de olhar para ela.

Ela impunha as mãos sobre o doente: sarava ou melhorava papeira, peito cansado, tosse de guariba, barriga d’água, ferrada de arraia, doença da coluna, gastrite e muitas mazelas mais.

Quando a doença não permitia que alguém fosse à presença de Emerenciana a garça da saúde voava e rasgava o matagal, levando o remédio consolador nas asas do pensamento e das vibrações positivas.

Doutor Sinésio, médico na cidade, chegou a examinar diversas pessoas que já tinham sido tratadas e concluiu, pela sua medicina, que nenhuma delas apresentava sinal de doença, mas afirmava cauteloso, que não tinha condições de atestar se essa gente estava ou não enferma antes de ir à presença da entidade conhecida também como “garça luminosa” pelo povo da região.

Mas existiam, também, muitas pessoas, segundo o médico, que se sabia estarem realmente doentes e que tinham sido vistas andando por aí, como se estivessem curadas após o contato com a garça plasmada pela Emerenciana.

O doutor, depois do jantar, costumava sentar-se em sua cadeira de balanço preferida na porta de casa para conversar.

Nessas ocasiões ficava pensando no poder que as forças telúricas possuem para incutir fantasias na credulidade das pessoas, também na Amazônia.

Ele trocava ideias com o juiz Deolindo:

  • A maioria dos seres humanos está sempre inclinada a mistificar, a mitificar, a encontrar respostas nem sempre lógicas e racionais para determinadas leis da natureza ainda desconhecidas.

Deolindo, concordando:

  • Eles não procuram estudar, nem ler e ficam praticando o famoso “achismo”. Eu acho isso e aquilo…

Doutor Sinésio completa:

  • Quando o sujeito se julga muito sabichão nesses assuntos e, na verdade nada entende, estamos diante da ignorância ilustrada, a pior de todas… É daí que começa a nascer o preconceito, os cismas, as desavenças ideológico-religiosas… Não poucas vezes há interesses inconfessáveis em jogo…

Na opinião do médico, que também era esotérico, não havia dúvida alguma: ele falava que Emerenciana estava fadada, embora talvez nem tivesse consciência disso, a servir de instrumento para que potências invisíveis, dedicadas ao Bem, pudessem levar àquela gente sofrida pelo menos uma parcela de saúde e de esperança.

Dessa maneira, o doutor Sinésio procurava explicar o fenômeno que o povo chamava de “garça luminosa”.

Ela adotou essa formatura de ave, já que era a que mais se aproximava da realidade do povo da região, quando era pressentida pelos chamados sensitivos.

Emerenciana estava cumprindo sua missão aqui no planeta Terra, diziam médico e as pessoas de espírito aberto.

As curas continuavam. A “garça luminosa” atendia a dezenas de pessoas cheias de esperança e Emerenciana continuava com sua vida simples de mulher do interior.

Certo dia chega um funcionário federal. Foi amor à primeira vista. Emerenciana não era mais a mesma. Agora estava amando. Estava se descobrindo como mulher. Foi tudo rápido. Namorou, noivou, casou.

Daí em diante a “garça branca” nunca mais deu o ar de sua graça.

A moça curandeira viajou com o marido para Recife, onde foi feliz, teve quatro filhos e nunca mais apareceu na terra natal.

E o meu amigo Conta Estrelas me disse que daí nasceu essa lenda fantástica, que poucos conhecem nos interiores da Amazônia.

O Tapajós era um imenso espelho de prata no luar de agosto, mas eu precisava trabalhar no dia seguinte e me despedi do meu parceiro.

Conta Estrelas ainda ficou sentado na orla do rio, imerso na paisagem. Ficava sempre assim, com os sonhos envolvidos no lençol da madrugada estelar.

Semana passada eu soube que ele subiu para morar nas estrelas que tanto amava.

José Wilson Malheiros
Magistrado do Trabalho Aposentado, Advogado, Músico, Poeta, Compositor, Instrumentista, Professor, Jornalista, Diácono e Escritor.

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