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Certo dia eu fui levar um dos meus cachorros lá na Ufra (Universidade

Federal Rural da Amazônia) para consultar o veterinário.

Caminhando por entre o arvoredo que adorna o Campus da Universidade, de repente me bateu o suave perfume daquela flor branquinha que parece um corrupio: a açucena.

Naquele momento, como se fosse mágica, lembranças da infância me perfumaram a alma e no cinema das minhas memórias, comecei a ver um filme.

Eu tinha entre três ou quatro anos de idade e Dona Maria, minha babá, me carregava no colo e me paparicava.

Ela tinha um filho, o Iracildo, na época entre dez ou doze anos.

Ele era um negrinho gordinho, caolho e inteligente.

Gostava de me contar estórias de Bichos-Papões e Cobras Grandes, de “velhos que pegavam crianças para colocar dentro do saco” e mais uma quantidade enorme de enredos que ora me amedrontavam, ora me faziam feliz e estimulavam a minha imaginação de criança.

Estávamos em Santarém, na década de 1940. Nada de televisão, rádio, revistas ou jornais.

Era a época da inocência da fantasia e das novelas que minha mãe escutava toda noite no rádio de válvulas, pela rádio Nacional, do Rio de Janeiro.

A recepção do som era cheia de oscilações e chiados, mas ela aguentava firme, pois gostava desses dramalhões radiofônicos, que se transformaram nas novelas da televisão moderna.

Eu já conhecia o prefixo. Ao escutar a música, gritava:

– Mamãe, novela!

E ela vinha correndo para junto do rádio.

O meu amigo Iracildo tinha uma maneira toda peculiar de ilustrar suas narrativas.

Fazia gestos com as mãos, ruídos com a boca e falava:

– Aí a onça… aí a cobra grande… aí… aí… aí…

Era um “aí” que não acabava mais.

Papai e mamãe gostavam de brincar com ele:

– Aí, queres tomar café com pão? Aí não vai contar estória hoje? Aí, amigo, como vai?

Aí o meu amigo dava um sorriso banguela e perguntava por mim:

– Cadê o Zequinha?

Mas, eu estava falando que estava nos bosques na Ufra, onde o sol da manhã iluminava a bela paisagem e me acendia essas lembranças cheias de ternura.

Todo dia quando meu pai saía para trabalhar eu pedia:

Pai traz um carneirinho pra mim?

E ele sempre respondia:

Papai vai trabalhar no banco pra ganhar dinheiro e comprar um carneirinho por filhinho, tá?

Mas, o tal carneiro nunca chegava.

Eu não compreendia que não dava para criar um animal desses naquela casa pequena e de quintal pequeno, ali na quinze de novembro.

Assim era o lar de início de vida de meus pais.

Meu velho não queria me decepcionar e ia me mantendo em “banho Maria”.

Todo dia era o mesmo pedido e a mesma resposta.

Num domingo, após o almoço, Iracildo aparece lá em casa com um carneirinho amarrado na corda.

Foi entrando e dizendo:

– Cadê o Zequinha, taqui o presente que ele queria!

Pulei, gritei, ri, chorei de alegria. Ali estava o meu sonho se realizando.

O único olho bom que ele possuía, brilhava, lagrimava e sorria.

Logo mandaram o carneiro para o pequeno quintal, para que as “petequinhas” que ele costumava fazer não sujassem a casa.

Eu não comia, nem dormia. Vivia o tempo todo ao lado do carneirinho.

Mas, a minha alegria durou pouco.

Santarém era uma cidade diminuta. Para minha decepção, dois dias depois, apareceu o dono do carneirinho e o levou embora. Até hoje tenho saudades.

Para mim esse cordeirinho simboliza os dias dourados da infância, ouvindo as estórias do Iracildo.

Anos após, eu já estava com mais ou menos quinze ou dezesseis anos e o meu contador de estórias, que andava sumido, reapareceu já ali na casa da travessa Francisco Correa, com uma muda de açucena.

Era mais um presente, que ele mesmo plantou no quintal de casa.

A açuceneira cresceu esplendorosa e sentia o maior prazer em me presentear com as suas flores.

Toda manhã eu colhia algumas açucenas e levava para a minha mãe, na cozinha. Era um ritual de ternura e perfume.

Depois do dia em que plantou a açuceneira em nosso quintal ele tornou a desaparecer. Nunca mais o vi.

Certa manhã notei minha mãe tristonha, preparando-se como quem ia fazer algo muito grave.

Era assim que as pessoas se comportavam quando iam visitar doentes, iam a enterros ou velórios.

Pois é. Horas depois, quando minha mãe voltou para casa, me chamou no quarto e me contou, chorosa:

– Meu filho, teu amigo partiu. Ele morreu ontem à noite.

Com lágrimas no olhar, perguntei o que ele tinha.

Ela mal disfarçou o choro e falou:

– Tuberculose, meu filho!

Na minha idade eu nem sabia que doença era essa, que levava os amigos da gente.

Uma semana depois, a açuceneira começou a secar… a definhar… até que se acabou de vez.

É, Iracildo, meu carneirinho negro, meu primeiro amigo de infância, as açucenas eram o perfume da tua alma.

Mas, precisavas levar também as flores contigo, para o céu?

*O artigo acima é de total responsabilidade do autor.

José Wilson Malheiros
Magistrado do Trabalho Aposentado, Advogado, Músico, Poeta, Compositor, Instrumentista, Professor, Jornalista, Diácono e Escritor.

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