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Pesquisadores desenvolveram um antiveneno experimental, que protege contra as picadas de 19 espécies de cobras altamente venenosas, utilizando anticorpos derivados do sangue de um homem que se autoexpôs a mais de 600 doses de veneno ao longo da vida. O estudo, publicado nesta semana na revista Cell e repercutido pela Nature no artigo Blood of man who’s had 200 snake bites helps make a potent antivenom, oferece esperança para um problema de saúde negligenciado que mata mais de 100 mil pessoas por ano em regiões tropicais e pobres.

O homem em questão é Tim Friede, um entusiasta autodidata da herpetologia, que passou mais de duas décadas se expondo a venenos de cobras — de naja a mamba negra — na tentativa de desenvolver imunidade. Ele afirma ter sido picado mais de 200 vezes, muitas delas de forma quase fatal. Seu objetivo declarado era ajudar a criar um antídoto universal. E, ao que tudo indica, sua missão pode ter gerado frutos.

A equipe liderada por Jacob Glanville, da empresa de biotecnologia Centivax, e pelo bioquímico Peter Kwong, da Universidade Columbia, obteve autorização ética para coletar amostras do sangue de Friede. Nelas, encontraram anticorpos eficazes contra dois grupos de neurotoxinas presentes nos venenos das serpentes da família Elapidae, grupo que inclui a temida cobra-rei (Ophiophagus hannah). A esses anticorpos foi adicionado um terceiro componente: o medicamento varespladib, inibidor de uma enzima que contribui para os efeitos destrutivos do veneno no tecido muscular e nervoso.

O resultado foi uma terapia em coquetel que, em testes com camundongos, garantiu a sobrevivência dos animais mesmo após doses letais de veneno de diversas cobras elapídeas.

A pesquisa chama atenção pelo seu potencial biomédico e também pelo método extraordinário que permitiu seu desenvolvimento. Embora Glanville ressalte que não incentivou nem endossou os experimentos pessoais de Friede, o estudo levanta questões sobre os limites éticos da pesquisa médica. “Não é necessário que ninguém mais faça isso. Já temos todas as moléculas de que precisamos”, disse o cientista à Nature.

Especialistas como o biólogo Kartik Sunagar, do Instituto Indiano de Ciência em Bengaluru, destacam o mérito técnico do trabalho, mas apontam o risco de se normalizar práticas perigosas sob o manto da inovação. “É inaceitável, diante da tecnologia disponível hoje em imunologia, que ainda dependamos de métodos antiquados como o uso de cavalos para produzir antivenenos”, afirma.

O tratamento tradicional de envenenamentos ofídicos envolve a aplicação de antivenenos produzidos a partir do soro de animais como cavalos, o que frequentemente causa reações adversas. Por se basearem em anticorpos humanos, os tratamentos como o da Centivax prometem ser mais seguros e eficazes. No entanto, especialistas alertam que o maior desafio não é apenas criar um bom antiveneno, mas garantir que ele chegue a tempo aos pacientes, principalmente em áreas rurais remotas da África, Ásia e América Latina, onde o socorro médico é escasso.

Para Jean-Philippe Chippaux, pesquisador do Instituto Francês de Pesquisa para o Desenvolvimento Sustentável, “o problema real é a logística. Muitas mortes ocorrem porque o tratamento chega tarde demais. O novo antiveneno pode ser eficaz, mas isso não basta”.

Glanville afirma que a próxima fase é realizar testes com cães vítimas de picadas na Austrália — sempre com o protocolo de segurança de oferecer o antiveneno convencional caso a terapia experimental falhe.

O estudo oferece uma nova abordagem para um problema de saúde pública negligenciado que, segundo a Organização Mundial da Saúde, atinge cerca de 2,7 milhões de pessoas por ano, com alta taxa de mortalidade e morbidade, incluindo amputações e sequelas permanentes. Um antiveneno de amplo espectro, seguro e com menor custo pode representar uma virada histórica no tratamento de picadas de cobra.

Mas, como mostram as reações mistas da comunidade científica, a origem supostamente heroica do experimento de Tim Friede mostra questões éticas que não podem ser ignoradas: o progresso biomédico não deve depender do sofrimento individual voluntário e fora dos protocolos de segurança.

Gabriella Florenzano
Cantora, cineasta, comunicóloga, doutoranda em ciência e tecnologia das artes, professora, atleta amadora – não necessariamente nesta mesma ordem. Viaja pelo mundo e na maionese.

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