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Meu primeiro vinho aconteceu em inesquecível travessura, antes dos cinco anos de idade. Meu avô adquiria vinho em barril que ele próprio engarrafava, lacrando o arrolhamento das garrafas com pez aquecido para evitar a oxidação do conteúdo.
Naquele dia a festa das garrafas foi suspensa. Atraído pelo aroma e pelo líquido rubi que descia da torneirinha, aproveitei rara distração de meu avô, enchi meu copo e fugi do local, ocultando-me num armário para matar a curiosidade. Sorvi com ansiedade, quase de um só fôlego, com receio de ser contido em flagrante delito. Não sei que volume tomei, mas foi o suficiente para dormir e passar mal, regurgitando substância avermelhada que preocupou minhas tias, supondo elas que fosse sangue. Como meu cérebro tem incrível capacidade de apagar o que não presta e memorizar o bom, esqueci o porre e a ressaca. Recordo apenas a travessura.
Assim comecei a percorrer muito cedo os caminhos dos rituais a Baco e a Dionísio. Na adolescência, com a grana curta, conheci as cachaças, delirando com as congeladas, puras e meladinhas. Nada de misturas nem batidas. Quando a grana melhorou, saltei para o malte escocês, sem tropeçar nas cevadas, montando o Cavalo Branco na garupa do general Grant. Depois vieram os bagaços, os conhaques, os armanhaques, os de pêra ou de maçã, as vodcas e a suprema embriaguês do absinto, todo esse gênero de álcool potável que o mundo produz. Quando meus pedaços de fígado exageraram nas reclamações, abominei tudo e dei férias de quase um ano aos derivados alcoólicos. Superado esse tempo de constrangida abstemia, voltei à vida, tornando-me fiel ao vinho, meu velho companheiro, hoje indispensável em taça única nas refeições do cotidiano. Assumi então a monogamia etílica.
Minha predileção pelo vinho principiou com os brancos do Loire, sub-região de Vouvray. Achampanhados ou naturais, brilham como topázio e chegam ao gosto como frutas ao mel. Satisfatórios à vista, ao olfato, ao paladar e ao bolso de qualquer principiante. Àquela época, custo muito módico em qualquer mercearia de Paris. Depois cheguei aos riesling da Alsácia, levemente esverdeados lembrando citrinos, secos porém macios. Depois enveredei pelos champagnes e varei pelos souternes à sobremesa.
Quase ao mesmo tempo, já havia passado pelos tintos do Medoc, descendo o rio Dordogne até a confluência com o do Gironde, tangenciando St. Emilion com água na boca ao ver barcos a remo carregados de barricas, iguais àquelas de meu avô. E apresentei meus cumprimentos de chegada aos Cabernet Sauvignon e aos Merlot. A seguir, naveguei nas correntes dos ventos, cavalgando nuvens em direção a leste até a Borgogne, apeando na Côte-d’Or para chegar aos Pinot Noir. Finalmente cheguei ao vale do Rhône e conheci os Syrah. Todos eles, do oeste ao leste, varietais ou de corte, puros ou misturados, são amigos memoráveis.
Foi assim que aprendi a enfrentar a boemia das noites frias do Pigalle caminhando da Praça Blanche até Montmarte, para agasalhar-me no La Mère Catherine, na Praça de Tertre, onde a lenda diz que a palavra “bistro” – “rápido” em língua russa – teria ingressado no vocabulário francês para designar categoria de restaurante, quando os cossacos invadiram Paris em 1814 e exigiam atendimento com rapidez para serem servidos. Nesse lugar, escutei Edith Piaf, em noite de inesquecível colher de chá, na primavera que antecedeu seu derradeiro outono.
Todos esses vinhos ensinaram-me a avaliar o privilégio de poder compartilhar, no ano de 2001, com minha mulher e minha filha e apenas mais dois amigos, no calor da ilha do Mosqueiro, o supremo Romanée-Conti, que viajou ao meu colo de Nova Orleans para Belém, acalentado como imagem de santo de devoção. Foi um dos melhores vinhos tintos da safra de 1990 que o mundo produziu depois de 1945.
Ultrapassando as fronteiras da França, conheci os vinhos brancos do Alto Adige, os Barolo, do Piemonte, passando pelos Chianti, da Toscana e pelos Tempanillos, da Espanha. Só então cheguei às cepas lusitanas pelas margens do rio Régua, na região do Douro e mais recentemente pelas uvas do Sado e do Azeitão, com o tratamento atual que valoriza a tradição portuguesa.
Nada aconselha, porém, que se avalie a qualidade do bom vinho apenas pelo rótulo ou pela origem.
Há vinhos brasileiros tão bons quanto os argentinos e chilenos. Os nossos, onerados por impostos que elevam seus custos e terminam favorecendo os andinos. Há norte-americanos e neozelandeses que atingiram elevados índices de aprovação. Há também entre os bons vinhos da União Sul Africana, um, muito especial, cujo preço não passa de duzentos reais e é tão bom, que o produtor exagera na propaganda dizendo ser o “Pétrus” africano, para associar sua imagem ao mais caro e melhor tinto Bordeaux, o Château Pétrus, de Pomerol. Inesquecíveis são também os vinhos tintos da Áustria, que acompanham pratos típicos de carne, servidos em restaurantes populares de Viena. Aqui mesmo em Belém, está em guarda na adega de amigo meu, um excelente Château Haut-Brion. É um Bordeaux da mais alta preciosidade, que não suporta envelhecer. Vale quase dois mil dólares. A garrafa.
Os bons vinhos, porém, não precisam ser necessariamente caros, nem fora de série. Há vinhos da mais alta cotação que não valem meio real quando chegam à taça, prejudicados pelas más condições de transporte ou de guarda, ou pelo uso precoce quando sejam daqueles que devam envelhecer, ou pela tomada tardia no caso dos que devam servir-se jovens, ou ainda pela temperatura inadequada do líquido em relação ao ambiente. Os dois melhores vinhos do mundo, o Château Pétrus, de Bordeaux, se for sorvido após cinco anos de garrafa e o Romanée-Conti, da Borgogne, se for à taça antes de dez anos de guarda adequada, equivalem-se a um vinho qualquer. O primeiro deve ser apreciado jovem. O outro exige envelhecer.
E qual é, então, o melhor vinho? É aquele, de alto ou baixo custo, de qualquer origem, que tenha sido cuidado com carinho para ser apreciado em momentos certos e em parceria agradável de pessoa especial. Nessas horas, sua cor se transfigura, seu aroma se expande e seu sabor se diviniza, pelos olhos, pelo olfato e pelos lábios dos que dele compartilham. Esse será sempre o melhor vinho.
(Eudiracy Silva, advogado e enófilo)

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