Publicado em: 12 de maio de 2025
A Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), decisão unânime, reconheceu, na última semana, o direito à retificação do registro civil para incluir o gênero neutro. A medida representa um marco na jurisprudência brasileira, ao estender às pessoas não binárias – aquelas que não se identificam exclusivamente como homem ou mulher – o mesmo reconhecimento legal já garantido a pessoas trans.
Embora ainda não exista uma lei específica que regulamente a inclusão de um terceiro gênero no registro civil, o STJ entendeu que essa lacuna legislativa não pode impedir o exercício de um direito fundamental: o da autodeterminação de gênero e da construção livre da própria identidade.
A relatoria foi da ministra Nancy Andrighi, que afirmou: “Todos que têm gênero não binário e querem decidir sobre sua identidade de gênero devem receber respeito e dignidade, para que não sejam estigmatizados e fiquem à margem da lei.”
O STJ autorizou a alteração do registro civil de uma pessoa que, após fazer cirurgias e tratamentos hormonais e já ter mudado nome e gênero de forma binária, passou a se reconhecer como não binária. O objetivo era retirar a referência obrigatória a “masculino” ou “feminino” e incluir a menção ao gênero neutro, alinhando o documento à sua identidade autopercebida.
Instâncias inferiores da Justiça haviam negado o pedido. O Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP), por exemplo, sustentou que o ordenamento jurídico brasileiro reconhece apenas os gêneros masculino e feminino, e que qualquer mudança exigiria debate legislativo prévio.
Ao reverter a decisão, o STJ destacou que o direito à identidade de gênero faz parte da cláusula geral de proteção à personalidade, prevista no artigo 12 do Código Civil. A corte também lembrou que o Brasil já permite, desde 2018, amudança de nome e gênero de pessoas trans, inclusive por via extrajudicial, com base na autodeclaração. No entanto, essas mudanças sempre seguiram a lógica binária.
Com a decisão, pessoas que se identificam como não binárias podem solicitar a retificação do registro civil para refletir sua identidade de gênero, mesmo sem uma legislação específica para isso. O reconhecimento é feito judicialmente, com base na jurisprudência do STJ, e deve respeitar a autonomia individual, a dignidade da pessoa humana e o livre desenvolvimento da personalidade.
A decisão não elimina a referência ao campo “gênero” nos documentos oficiais, mas permite que este campo passe a registrar uma identidade neutra, a depender do caso e da decisão judicial.
A relatora lembrou que, conforme o artigo 4º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB) e o artigo 140 do Código de Processo Civil, a ausência de uma lei específica não significa ausência de direito. Assim, os tribunais devem interpretar o ordenamento jurídico em consonância com os princípios constitucionais, especialmente a dignidade da pessoa humana, a igualdade e o pluralismo.
A decisão do STJ sublinha que o Poder Judiciário não pode se omitir diante de demandas que envolvem direitos fundamentais, mesmo na ausência de norma regulamentadora. O tribunal também citou países que já reconhecem legalmente o gênero não binário, como Alemanha, Austrália, França, Holanda e Índia, como referência para o avanço dos direitos no Brasil.
O gênero neutro ou não binário é uma identidade de gênero que não se enquadra nas categorias tradicionais de “masculino” ou “feminino”. Pessoas não binárias podem se identificar com características de ambos os gêneros, com nenhum, ou com uma identidade que flutua entre os dois. Trata-se de uma vivência legítima e cada vez mais reconhecida por organismos internacionais e sistemas jurídicos em todo o mundo.
O STJ atesta, através da decisão, que o sistema jurídico brasileiro deve acompanhar a evolução social e cultural, reconhecendo formas plurais de existência e identidade. A possibilidade de incluir o gênero neutro no registro civil é um ato simbólico de acesso à cidadania plena para pessoas que historicamente viveram à margem da legalidade e do reconhecimento oficial.
A decisão tem repercussão nacional e abre precedente para que outras pessoas não binárias, em situação semelhante, busquem o mesmo reconhecimento judicial até que, eventualmente, o tema seja regulamentado por lei.
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