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Continuo minhas notas a respeito das heranças do Papa Francisco. Na crônica de hoje prossigo na reflexão a respeito de suas contribuições para um mundo mais justo, multipolar e tolerante.

Em defesa da América Latina

Outra mensagem viria logo em seguida a sua visita a Lampedusa, o porto italiano onde milhares de refugiados ilegais aguardavam auxílio e o direito de imigração, situação referida na crônica anterior. E essa mensagem, tal como sua visita a Lampedusa, teve um grande poder simbólico: Francisco teve a coragem – para os conservadores de plantão “uma ousadia” –  de receber, em pleno Vaticano, Gustavo Gutiérrez, fundador da Teologia da Libertação – esse movimento católico de base marxista, catalizador de uma percepção da justiça social na América Latina.

Cabe lembrar que os Papas anteriores, João Paulo II e Bento XVI, foram muito hostis à Teologia da Libertação – à despeito da importância desse movimento em favor de uma igreja voltada para os pobres e para a justiça social – e à despeito, ainda, da sua importância para o crescimento e fortalecimento da Igreja católica no continente latino-americano.

Seguiram-se outras ações de grande simbolismo: a canonização do arcebispo de El Salvador, Oscar Romero, assassinado em 1980 pelos militares desse país, extremamente respeitado na América Central. Romero foi beatificado em maio de 2015, e canonizado em 2018. Juntamente com isso, pela primeira vez na história, o jornal do Vaticano, L’Osservatore Romano passava a publicar artigos e reportagens esclarecendo a importância da Teologia da Libertação – coisa que, segundo contam, há muitos anos tentava fazer e era interditado.

Sim, e é preciso recordar a sequência de importantes e vibrantes discursos do papa Francisco, durante sua visita ao Peru, ao Equador e à Bolívia, em 2015, homenageando  memória de padre-cineasta-e-poeta Luis Espinal Camps,  jesuíta  como ele, importante liderança nos movimentos sociais bolivianos, assassinado cruelmente durante a ditadura de Luis García Meza, em  1980.

Então Francisco foi um teólogo da libertação?

Não. De jeito nenhum. Inclusive isso pode ser a chave para compreender sua relação com o socialismo, com o marxismo e com o pensamento progressista de um modo geral. Reconhecer a Teologia da Libertação não significa que fosse aderente a ela – do mesmo modo que reconhecer a ação política de uma pessoa não significa que você faça parte dela.

Estamos falando de um homem justo. Uma pessoa que sabe reconhecer o papel de movimentos sociais que não são os seus. Sua formação intelectual se produziu no contexto de um movimento católico argentino chamado Teologia do Povo, que não é a mesma coisa que a Teologia da Libertação. Os dois não são concorrentes, mas de jeito nenhum são a mesma coisa.

Enquanto a Teologia da Libertação possui um substrato marxista, partindo do reconhecimento de a vida social é organizada a partir da luta entre segmentos política e economicamente dominantes e segmentos política e economicamente  excluídos, a Teologia do Povo parte da percepção de que a vida social constitui uma luta entre o “povo” o “não-povo”, se inserindo num pensamento jesuíta de muitos séculos e que embora resulta numa opção preferencial pelos pobres, não é um pensamento marxista.

Francisco foi um Papa socialista?

Não. Ele nunca reivindicou essa categorização – ou essa alcunha, a depender do ponto de vista. O que seus discursos, sua ação e seu pontificado levam a compreender é que foi, numa dimensão mais clara, um Papa anti-capitalista. E, associadamente a isso, um Papa ambientalista. Muitas vezes passou a mensagem de que o ambientalismo é inconciliável com o capitalismo. Sua ação anti-capitalista era fundamentada por uma ação ambientalista. Na profundidade do seu pensamento, Francisco foi, talvez, um Papa ecossocialista.

Digo isso porque a essência das suas falas críticas ao capitalismo se assentavam numa crítica à exploração na natureza. Incontáveis vezes o mote de suas homilias foi a ideia de que a ambição, a exploração do trabalho, bem como dos recursos naturais, coloca em perigo a “nossa casa em comum”.

Sua mais famosa encíclica, a Laudato Si, de 2015 – a “Encíclica Ecológica”, como muitos a chamaram – foi um dos documentos mais importantes do século XXI. Nunca, antes, foi tão clara a mensagem de que a luta ambiental só faz sentido quando é, também, uma luta social. Sua crítica, radical, da “ecologia de mercado”, do “mercado de carbono” e, em geral do fetiche ambientalista corroeu muitos argumentos do capital  e nunca – nunca depois de Jesus Cristo, bem entendido – colocou a Igreja numa posição tão anti-sistêmica.

O conceito-chave para entender o Papa Francisco: “periferia existencial”

O pensamento ecossocialista de Bergoglio pode ser compreendido, também, e sobretudo, como uma atualização, como a contemporaneidade, dos compromissos políticos do Concílio Ecumênico Vaticano II. E a síntese disso, a frase que, provavelmente produz a origem da Laudato Si, se encontra na Exortação Apostólica “Evangelii Gaudium”, de 2014, na qual desponta essa frase que mexeu com a cabeça de muita gente no planeta: “Fare teologia dalle Periferie Esistenziali”.

Ou seja, fazer teologia das periferias existenciais… Isso explica sua ação nas periferias políticas do mundo e o crescimento da Igreja Católica na África e na Ásia, bem como em muitas regiões periféricas no restante do mundo. Isso explica sua opção pelos refugiados e pelos pobres.

Fábio Fonseca de Castro
Fábio Fonseca de Castro é professor da Unversidade Federal do Pará e atua nas áreas da sociologia da cultura e do desenvolvimento local. Como Fábio Horácio-Castro é autor do romance O Réptil Melancólico (Editora Record, 2021), prêmio Sesc de Literatura.

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