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Os crimes contra Ordem Tributária não se caracterizam pelo mero inadimplemento da obrigação tributária principal (pagar o tributo). Afinal, dever não é crime. Tais delitos são caracterizados por um plus, isto é, pela prática de um engodo, de uma fraude que ocorre no momento da realização de uma obrigação tributária acessória (v.g. preenchimento de livros fiscais obrigatórios, prestação de informações falsas) ocasionando, como consequência, a impossibilidade de a Fazenda conhecer a existência do fato gerador e, assim, lançar o tributo.

Dividem-se, assim, os crimes tributários em delitos materiais e formais. Os ilícitos materiais são aqueles que, além da fraude ou engodo, exigem o não pagamento do tributo devido e estão dispostos no artigo 1º da Lei 8.137/1990, incisos I a IV, possuindo como principais exemplos a omissão de informação obrigatória ou a inserção de elementos inexatos ou falsos nos livros fiscais obrigatórios. Os crimes formais, por sua vez, se consumam com a mera realização da ação proibida, não exigindo a ocorrência do resultado (não pagamento do tributo devido). Tais delitos, estão previstos no inciso V do art. 1º e no art. 2º, possuindo como principais hipóteses de ocorrência a venda de mercadoria desacompanhada de nota fiscal quando obrigatório e o não recolhimento, no prazo legal, valor de tributo descontado ou cobrado.

A legislação brasileira, portanto, promove uma dupla tutela da Ordem Tributária. No campo cível-administrativo, busca recuperar a receita perdida. Já no campo criminal, busca prevenir e reprimir condutas que atentem contra a higidez da fazenda, bem como que proteja a verdade informacional derivada do cumprimento das obrigações tributárias acessórias, essenciais para o conhecimento do fato gerador.

Em que pese ser possível discutir a legitimidade da dupla proteção para Ordem Tributária existente no Ordenamento Jurídico Brasileiro, fato é que diversos países também a adotam em suas respectivas legislações. Afinal, a síntese de Holmes & Sustein aventa-se verdadeira, ou seja, direitos custam, sendo que as obrigações positivas e mesmo as obrigações negativas assumidas pelos Estados Contemporâneos derivam e necessitam da receita tributária. Daí a importância do objeto de tutela.

Essas características especiais dos crimes contra ordem tributária, somada as consequências que representam para o Estado, sobretudo relacionadas ao cumprimento de obrigações positivas  de toda ordem (sociais, econômicas, etc), provocou, desde sempre, a previsão, pelo Ordenamento Jurídico Brasileiro, de alternativas à punição criminal, desde que o acusado pelo crime tributário cumprisse determinadas condições, a tempo e modo. Em outras palavras, a legislação brasileira sempre previu que eventual pagamento ou parcelamento do tributo devido resultaria em extinção ou suspensão do processo penal, respectivamente.

A primeira legislação sobre a matéria (Lei 4.729/65) já dispunha que a pretensão criminal seria extinta se o sujeito ativo comprovasse o pagamento integral do tributo antes que tivesse início o procedimento fiscal administrativo. Em 1967, esse marco temporal foi alterado (Decreto-Lei n. 157/67) pelo programa especial de pagamento de tributos que previa a extinção da persecução penal com o adimplemento do crédito tributário.

Segue-se em 1969, nova alteração. Com o advento do Decreto-Lei n. 1.060/69, o marco temporal foi novamente alterado. Assim, a persecução penal seria extinta se o pagamento ocorresse antes da decisão administrativa de 1ª instância. Já em 1990, com surgimento da Lei 8.137, o art. 14 dispunha que a punibilidade seria extinta se o pagamento do tributo ocorresse antes do oferecimento da denúncia.

Esta previsão perdurou até a promulgação da Lei 8.383/1991 que revogou a possibilidade da extinção da punibilidade por qualquer meio, até a entrada em vigor da Lei 9.249/1995 que, novamente, previu a extinção da punibilidade se o pagamento ocorresse antes do oferecimento da denúncia.

A partir dos anos 2000, surgiram diversos programas especiais para regularização tributária, denominados “REFIS”, os quais objetivam a possibilidade regularização de passivos tributários oferecendo certos benefícios como a considerável redução de juros e multa, bem como a possibilidade de extinção da persecução penal ou suspensão, a depender da ocorrência de integral adimplemento ou parcelamento.

O primeiro REFIS (9964/2000) constituiu-se no primeiro regramento a possibilitar a suspensão da ação penal pelo parcelamento do passivo tributário, desde que o parcelamento tenha ocorrido antes do oferecimento da denúncia. Com os REFIS de 2003 (Lei 10.684/2003) e de 2009 (Refis da Crise – Lei 11.941/2009) passou-se a admitir a suspensão da ação penal com o parcelamento do tributo realizado a qualquer tempo, suprimindo-se a necessidade de qualquer marco temporal.

Mantendo-se a tradição brasileira, todas as legislações também previam que o pagamento integral do tributo ocasionaria, automaticamente, a extinção da punibilidade, resultando no arquivamento imediato do processo penal.

Em 2011, surgiu uma nova alteração legislativa. A Lei 12.382/2011 voltou a exigir que o parcelamento tributário ocorra em momento anterior ao recebimento da denúncia criminal, para que seja possível a obter a suspensão do processo penal. Em outras palavras, de 2011 até o presente momento, não se pode mais sustentar a ideia de suspensão do processo penal pelo parcelamento do tributo se não observado o marco temporal exigido pela lei, qual seja, que o contribuinte adira ao REFIS antes do recebimento da acusação pelo Poder Judiciário.

Significa dizer que, caso o parcelamento do tributo ocorra após o recebimento da denúncia, não haverá a suspensão do processo penal que continuará a tramitar até que o acusado/contribuinte realize o pagamento integral do crédito tributário ou seja absolvido no juízo criminal.

A jurisprudência das Cortes Superiores, inclusive, estabilizou esse entendimento, isto é, consumado o delito em data posterior ao advento da Lei 12.382/2011, o parcelamento somente provocará a suspensão do processo penal, caso seja realizado antes do recebimento da denúncia. O Superior Tribunal de Justiça, a propósito, já constituiu diversos precedentes nesse sentido: REsp 1493306/ES, Rel. Ministro SEBASTIÃO REIS JÚNIOR, SEXTA TURMA), julgado em 15/8/2017, DJe 24/8/2017; RHC 96587-SC, 2018/0074102-0 (STJ), publicado em 13/12/2018, RHC 94.845/PR, Rel. Ministro FÉLIX FISCHER. QUINTA; TURMA, julgado em 26/6/2018, DJe 1/8/2018; AgRg no RHC 94.476/PE, Rel. Ministra LAURITA VAZ. SEXTA TURMA, julgado em 25/9/2018, DJe 18/10/2018; AgRg no RHC n. 150.432/PR, relator Ministro Reynaldo Soares da Fonseca, Quinta Turma, julgado em 15/2/2022, DJe de 21/2/202; HC n. 443.245/SP, relator Ministro Ribeiro Dantas, Quinta Turma, julgado em 17/12/2019, DJe de 19/12/2019.

A compreensão da matéria, observando-se a diferença das consequências do parcelamento e do pagamento do tributo para o processo penal, é absolutamente importante e necessária para contribuintes paraenses que possuam débitos de ICMS, IPVA, ITCD e TFRM e, por tais débitos, estejam sendo acusados de terem praticado crimes contra Ordem Tributária, haja vista que o Decreto 2.557/2022 do Estado do Pará reabriu o prazo para regularização fiscal até o dia 31/10/2022.

Isso porque somente os débitos constituídos até 2011 poderão ser parcelados ocasionando a suspensão do processo penal. Os demais, em caso de parcelamento, independentemente, do número de parcelas, nos termos da jurisprudência consolidada, manterão a marcha processual, sem nenhum benefício-penal para o contribuinte que aderir ao PROREFIS/2022.

Diferentemente, o pagamento do tributo, mesmo que realizado em qualquer momento, até mesmo após eventual sentença condenatória, e antes do trânsito em julgado, configura-se em causa extintiva de punibilidade e de arquivamento automático da ação penal. Esse entendimento, também encontra majoritária aceitação nos precedentes jurisprudenciais constituídos ao longo dos anos, tais como: HC 362478/SP, Rel. Ministro JORGE MUSSI, QUINTA TURMA,Julgado em 14/09/2017,DJE 20/09/2017; HC 269546/SP, Rel. Ministro NEFI CORDEIRO, Julgado em 03/05/2016, DJE 12/05/2016; REsp 1111720/PR, Rel. Ministro SEBASTIÃO REIS JÚNIOR, Julgado em 13/08/2013,DJE 28/08/2013; HC 235164/SP, Rel. Ministro SEBASTIÃO REIS JÚNIOR, Rel. p/ Acórdão Ministra ALDERITA RAMOS DE OLIVEIRA (DESEMBARGADORA CONVOCADA DO TJ/PE), Julgado em 19/11/2012,DJE 17/12/2012; HC 232376/SP, Rel. Ministra LAURITA VAZ, QUINTA TURMA,Julgado em 05/06/2012,DJE 15/06/2012; AgRg no AREsp n. 1.772.918/SP, relator Ministro Ribeiro Dantas, Quinta Turma, julgado em 3/8/2021, DJe de 10/8/2021; AgRg nos EDcl nos EAREsp n. 1.717.169/SC, relator Ministro Ribeiro Dantas, Terceira Seção, julgado em 12/5/2021, DJe de 17/5/2021; AgRg no RHC n. 141.396/SC, relator Ministro Ribeiro Dantas, Quinta Turma, julgado em 13/4/2021, DJe de 16/4/2021.

Nesta segunda hipótese, eventual adesão ao programa de regularização, permitiria ao contribuinte, acusado da prática de crime, adimplir o valor do tributo, com redução de até 95% (noventa e cinco por cento) das multas e juros, desde que recolhidos respeitando a data limite de 31 de outubro de 2022 (art. 2º, I do Decreto 2.557/2022) e, consequentemente, provocar o efeito de extinção automática do processo penal.

Por fim, a depender dos riscos a serem assumidos pelo contribuinte a escolha por uma forma ou outra de adesão ao PROREFIS poderá ou não provocar importantes consequências em eventual processo penal, razão pela qual a decisão sobre adesão ao PROREFIS/2022 deve considerar, além de aspectos econômico-financeiros, também aspectos jurídicos de especial relevância.

Filipe Coutinho da Silveira
Advogado Criminalista e sócio fundador do escritório FS Advocacia, Especialista em Direito Penal & Criminologia pela PUCRS, em Direito Penal Econômico e Europeu pela Universidade de Coimbra, Portugal, em Ciências Criminais pela UFPA, em Direito Penal Tributário pelo IBET/IBDT, Reconhecido em diversas oportunidades como um dos advogados mais admirados do Brasil na área penal e no setor de mineração pela Revista Análise 500 Advocacia, Vice-Presidente da Abracrim/PA.

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