A lei 14688, sancionada em 20 de setembro de 2023, entrou em vigor em novembro do mesmo ano e alterou profundamente o Decreto Lei 1001/69, que concebeu o Código Penal Militar. Diga-se que a Lei Penal Militar, após 48 anos de aplicação, foi objeto de alteração em 2017 pela Lei 13491/2017 e agora pelo CODEX em comento. Durante a minha longa passagem como titular da 2ª Promotoria de Justiça Militar fui testemunha da dificuldade do operador do Direito Penal Militar em adaptar conceitos já insculpidos no já vetusto e ultrapassado Decreto Lei citado à Constituição Cidadã, assim cantada pelo saudoso Deputado Ulysses Guimarães, do alto de sua genialidade ao presidir a Assembleia Nacional Constituinte de 1987/1988.
Contudo, apesar da alma democrática da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, alguns conceitos introduzidos pela Lei 14688/23 encontram-se em descompasso com as funções Constitucionais do Direito Penal e, por obvio, já foram objeto de questionamentos pela Procuradoria Geral da República junto ao Supremo Tribunal Federal, verdadeiro guardião da cidadania. Cumpre salientar que seria impossível abordarmos todas as inovações da novel reforma da Lei Penal Militar, a qual passou por muitos anos esquecida pelo legislador infraconstitucional. Acrescento também que somente no curso da aplicação da Lei o operador jurídico observará sua verdadeira dimensão.
Assim sendo, passamos a analisar brevemente o que mais tem sido objeto de debate no campo da doutrina. O primeiro ponto a ser suscitado trata do QUANTUM da pena aplicada ao crime de injúria racial e homofóbico. Preceitua o art. 216 § 2º do Código Penal Castrense com a redação atualizada pela lei Lei 14688/23 que a pena prevista para o tipo de delito em comento é de 1 a 3 aos de reclusão, enquanto a Lei de combate ao racismo aplicada no âmbito do Direito Penal Comum prevê pena de 2 a 5 anos. Diante do quadro de total desproporcionalidade a PGR ajuizou a ADI 7547 perante o STF, após encaminhamento de representação da lavra do brilhante e estudioso Procurador Geral de Justiça Militar Antônio Pereira Duarte, sustentando violação dos Direitos Fundamentais em razão da não observância ao princípio da proteção deficiente. A PGR argumentou ainda que a “norma questionada viola os arts. 3º, IV (Objetivo fundamental de promover o bem de todos, sem preconceitos de origens, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas e descriminação), 5º XLII (mandamento de criminalização da prática de racismo), todos da Constituição Federal. Assim sendo os Art. 4º, 7º, e 10 da Convenção interamericana contra o racismo, a discriminação racial e formas correlatadas de intolerância, promulgada pelo Decreto 10.932 de 1001.2022, na forma do art. 5º §3º da Constituição Federal (com status de emenda constitucional)” . Outro tipo penal alvo de questionamento pela PGR junto ao STF por meio da ADI 7555 cuja relatora é a eminente Ministra Carmem Lúcia, pelos mesmos motivos, foi o de estupro de vulnerável praticado por militar em serviço ou em razão da função. Conforme a PGR relatou na ação, “o Código Penal Militar com as alterações feitas pela Lei 14688/23 deixou de estabelecer, para esse crime, a circunstância qualificadora resultante de lesão grave ou gravíssima”. Convém frisar que na Lei Penal comum o crime de estupro de vulnerável com lesão corporal grave tem pena de reclusão de 10 a 20 anos, enquanto no mesmo tipo penal quando praticado por militar nas circunstâncias do art. 9º do Código Penal Castrense a pena é de 8 a 15 anos. Diga-se ainda que, para os que não estão habituados a operacionalizar o Código Castrense, o crime militar pode ocorrer quando o militar tanto das forças armadas quanto das forças auxiliares (policiais militares e bombeiros militares) estiver atuando de serviço ou em razão da função, conforme o art. 9º do Código Penal Militar. Quando o militar estiver de serviço quase não há margens para interpretação, bastando que ele esteja devidamente escalado. O problema que observo é quando o militar estiver de folga e diante de situação resolve interferir em razão de sua função. À guisa de exemplo: o Policial Militar de folga, gozando de seu merecido descanso, presencia uma jovem indefesa sendo assaltada, resolve intervir e por conta dessa intervenção fere uma pessoa que não tem relação com os fatos. Chamo a atenção que nem sempre os operadores do Direito conseguem distinguir com a clareza solar do exemplo acima quando o militar atua ou não em razão da função, ou seja, em ambos os tipos penais questionados pela PGR (Injúria Racial e homofobia e estupro) , a depender da situação, poderá o sujeito ativo de um dos crimes optar ser processado no âmbito da Justiça Castrense, cujo tipo penal prevê pena inferior. Oxalá que a Suprema Corte decida em favor da sociedade.
Todavia, sem embargo das questões polêmicas agora analisadas pela Suprema Corte, tenho a esclarecer que a Lei 14688/23 não é e nunca será o “EVANGELHO DA DESPROPORCIONALIDADE CONSTITUCIONAL”. Tivemos muitos avanços sim e destaco, dentre outros, a inserção do art. 79-A (Concurso formal), bem como a alteração da redação do art. 80 (crime continuado).
Antes da reforma as penalidades para quem praticasse crimes mediante essas modalidades eram somadas e poderiam ultrapassar o máximo de 30 anos estabelecidos na Lei Penal Comum. Assim sendo, o Legislador colocou fim nas discussões sobre o tema e equiparou os institutos em ambos os Códigos. Não pretendendo mais delongar para não me tornar enfadonho concluo que as modificações introduzidas no Código Penal Militar por meio da Lei 14688/2023, de maneira geral, contribuirão para a modernização da aplicação da lei penal militar conforme os princípios do Direito Penal Constitucional, e penso também que toda modificação de paradigmas impõe modernos desafios e estou na torcida para que esses desafios sejam superados em favor do bem estar social.
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