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Indiscutível o potencial econômico-ambiental do Brasil. Desde o (ainda) desconhecido valor nutricional das PANC´s e da Floresta em pé, passando pela madeira, pelo solo fértil para agricultura, ou para os pastos da pecuária, chegando até os minérios como nióbio, ferro, níquel, manganês e, como não poderia ser diferente, o ouro. A grandeza do território brasileiro pode ser vista em números, v.g., 98% das reservas de nióbio estão localizadas no Brasil, possui ainda 3ª maior reserva de ouro da América Latina e o maior rebanho bovino do planeta terra.

A descoberta de riquezas, desde sempre, provocou no Brasil diversas consequências, nem sempre positivas. Conta-nos a história que as expedições bandeirantes, por exemplo, foram responsáveis pelo extermínio de comunidades indígenas e escravização desses povos tradicionais. A corrida pelo metal precioso, em razão de sua abundância, também permitia que homens simples, com a utilização de instrumentos rudimentares, como a picareta, se lançassem na corrida por meio da lavra de aluvião ou superficial. Também o garimpo de Serra Pelada, denominado de “formigueiro humano”, retrata bem o exemplo da corrida pelos metais precioso no Brasil.

Por conta dessa realidade, a legislação brasileira reconheceu e protegeu a figura do garimpeiro pelo Decreto nº 24.193/1934, pelo Código de Mineração de 1967, pela Constituição Federal de 1988 e pela legislação subsequente: a Lei nº 7.805/1989 (PLG), e a Lei nº 11.685/2008, que instituiu o Estatuto do Garimpeiro. Em todas essas legislações a figura do garimpeiro, ainda que cooperado, sempre foi tratado pelas características da individualidade, pela tradicionalidade e rudimentariedade do processo de exploração.

Ocorre que, simultaneamente, a evolução histórica das legislações teve que também regulamentar a atividade minerária empresarial, opondo-se rudimentariedade à modernização o que, ao longo do tempo, foi-se tornando cada vez mais difícil em razão da indeterminação terminológica dos conceitos, especialmente, pela adoção de parâmetros que não mais se relacionam com a forma de utilização econômica da jazida ou às técnicas e tecnologias aplicáveis para a lavra, ou seja, a definição de garimpagem passou a ser “a atividade de aproveitamento de substâncias minerais garimpáveis, executadas no interior de áreas estabelecidas para este fim (…) sob o regime de permissão de lavra garimpeira” (art. 10, Lei 7805/89 e art. 2º, Estatuto do Garimpeiro), bem assim à limitação espacial, conforme a Portaria DNPM 155/2016 que permite a emissão de Permissão de Lavra Garimpeiros em áreas de 50 há (hectares) para garimpeiros pessoas físicas e de 1000 ha (hectares) em caso de cooperativas, podendo chegar a 10.000 ha (hectares), se exercida a lavra na Amazônia Legal (art. 44), vedando-se a PLG em terras indígenas.

Nessa ambiência, a emissão da permissão de lavra garimpeira, com a evolução legislativa, passou a ser viável independentemente de porte, natureza e técnicas adotadas na exploração mineral, configurando um rompimento com as definições históricas existentes nos regulamentos anteriores sob matéria no Brasil, isto é, abandonou-se a definição de garimpeiro por meio das características da individualidade, pela tradicionalidade e rudimentariedade para adotar-se o critério espacial.

Mais do que isso, a distinção entre a garimpagem e a atividade economicamente organizada provoca uma série de contradições no âmbito da própria regulamentação existente no Brasil. Por exemplo, do ponto de vista ambiental, uma empresa que pretenda explorar a mineração precisa, antes, apresentar a pesquisa mineral, devidamente autorizada, a qual deve identificar a dimensão da extensão da jazida, sua produtividade, o grau de pureza do mineral, as técnicas necessárias para exploração, o custo desse aproveitamento, o impacto ambiental e a perspectiva de exequibilidade da atividade econômica, enquanto que o mesmo requisito é relativizado para a atividade de garimpagem.

Assim surge a seguinte possibilidade: se o Estado desconhece o potencial produtivo de uma eventual jazida, na medida em que se adquire a permissão de lavra garimpeira, essa mesma jazida poderá servir para “esquentar” ou “lavar” o minério oriundo de outros lugares e extraídos de forma ilegal. Essa prática se torna ainda mais evidente, na medida em que a lei 12.844/2013 presume a boa-fé do adquirente, ou seja, basta que a cooperativa garimpeira ou o garimpeiro individual declarem que o ouro seja proveniente de área legalizada para que, em todo o mercado, o minério seja tratado como de origem lícita.

Na mesma medida, a ausência ou a prestação de Relatórios Anuais de Lavra zerados – devidamente aceitos pelas agências regulamentadoras – favorecem a possibilidade de “lavagem” do minério. A esse respeito, na Operação Minamata, ocorrida no Estado do Amapá, restou identificado que a quantidade de ouro adquirido por DTVM´s foi superior à quantidade de ouro extraído informado pelas cooperativas garimpeiras, surgindo assim forte indício de que ou o relatório de exploração anual foi mal elaborado (o que prejudica o controle da exploração mineral) ou houve a aquisição de ouro ilegal pelas DTVM´s.

 Também favorecem as suspeitas de práticas ilícitas as normas de transporte e circulação do ouro no Brasil, haja vista que a Lei 12.844/2013 atribui ao vendedor a responsabilidade pela veracidade das informações prestadas no ato da compra e venda do ouro, inclusive quanto a origem do metal. Ademais, a lei prevê a presunção legal de boa-fé do adquirente desde que as informações prestadas pelo vendedor tenham sido arquivadas na sede da instituição legalmente autorizada a realizar a compra de ouro. Os dispositivos legais abaixo transcritos não deixam margem de dúvidas:

Art. 38. O transporte do ouro, dentro da circunscrição da região aurífera produtora, até 1 (uma) instituição legalmente autorizada a realizar a compra, será acompanhado por cópia do respectivo título autorizativo de lavra, não se exigindo outro documento.

(…)

Art. 39. A prova da regularidade da primeira aquisição de ouro produzido sob qualquer regime de aproveitamento será feita com base em:

I – nota fiscal emitida por cooperativa ou, no caso de pessoa física, recibo de venda e declaração de origem do ouro emitido pelo vendedor identificando a área de lavra, o Estado ou Distrito Federal e o Município de origem do ouro, o número do processo administrativo no órgão gestor de recursos minerais e o número do título autorizativo de extração; e

II – nota fiscal de aquisição emitida pela instituição autorizada pelo Banco Central do Brasil a realizar a compra do ouro.

(…)

§ 2º O cadastro, a declaração de origem do ouro e a cópia da Carteira de Identidade – RG do vendedor deverão ser arquivados na sede da instituição legalmente autorizada a realizar a compra do ouro, para fiscalização do órgão gestor de recursos minerais e da Secretaria da Receita Federal do Brasil, pelo período de 10 (dez) anos, contados da compra e venda do ouro.

§ 3º É de responsabilidade do vendedor a veracidade das informações por ele prestadas no ato da compra e venda do ouro.

§ 4º Presumem-se a legalidade do ouro adquirido e a boa-fé da pessoa jurídica adquirente quando as informações mencionadas neste artigo, prestadas pelo vendedor, estiverem devidamente arquivadas na sede da instituição legalmente autorizada a realizar a compra de ouro.

O sistema normativo existente cria, portanto, espécie de monopólio de compra do ouro de origem do garimpo pelas DTVM´s, porém, mesmo após a primeira compra, a comprovação da regularidade e do transporte, para qualquer destino, deve ser realizada mediante a apresentação da correspondente nota fiscal.

Art. 40. A prova da regularidade da posse e do transporte de ouro para qualquer destino, após a primeira aquisição, será feita mediante a apresentação da respectiva nota fiscal, conforme o disposto no § 1º no art. 3º da Lei nº 7.766, de 11 de maio de 1989.

Justamente na conjugação desses 04 pontos – (a) lavagem por desconhecimento produtivo de uma jazida; (b) lavagem em decorrência da incompatibilidade relatórios anuais de exploração; (c) presunção de boa-fé; e (d) Nota fiscal como documento de transporte – que se inserem as Operações Policiais que se destinam a coibir ou reprimir a exploração ilegal do minério de ouro no Brasil.

Ocorre que, se percebe, mais uma vez, a existência de um vácuo legislativo e de controle mais rigoroso sobre a atividade, transferindo para o Direito Penal a função de solucionar práticas consideradas indesejadas que decorrem das próprias opções legislativas do Congresso Nacional.

Ainda que brevemente demonstrou-se a evolução histórica da legislação, tendo sido demonstrado a mudança de parametrização para definição de garimpagem. Abandonou-se o critério tradicional (rudimentariedade, individualidade e tradicionalidade) por um critério espacial o que acabou por permitir a ampliação do conceito de garimpagem para atividades que, se utilizado o critério mais restritivo, jamais poderiam ser alcançadas.

Em segundo lugar, evidenciou-se a existência de relativizações legais e administrativas para os processos de autorização de execução de pesquisa e lavra, possibilitando, por exemplo, afrouxamento da identificação e conhecimento do potencial produtivo de uma jazida, bem como de impactos ambientais. E, por fim, restou demonstrado que a circulação do ouro, diferentemente, da madeira, por exemplo, possui um nível de controle bastante inferior, estando relacionado a apresentação do documento fiscal, o qual à toda evidência não permite, v.g., a exata comparação de dados em casos de suspeitas de origem ilícita.

Diante dessa moldura fática e normativa, a questão da ilegalidade do ouro é muito menos um problema do Direito Penal e muito mais um problema de opções de políticas públicas que devem ser enfrentadas pelo Estado Brasileiro, sobretudo pelo Congresso Nacional. Pense-se, por exemplo, na situação de um atravessador, parceiro da garimpagem, responsável pela diminuição da distância entre um garimpo (individual ou cooperado) e uma DTVM. Por mais que o atravessador seja adepto de práticas heterodoxas, a lei obriga que se presuma boa-fé das informações prestadas (Lei 12.844/2013, art. 38, I, §3º) e boa-fé do adquirente, bem assim da legalidade do ouro adquirido (Lei 12.844/2013, §4º). Assim como na mitologia grega, o Direito Penal recebe uma função sem propósito, isto é, tal e qual Sísifo, foi condenado pelos deuses, a rolar uma enorme pedra montanha acima para, ao chegar no topo, vê-la rolar montanha abaixo, repetindo essa tarefa, cotidianamente.

Filipe Coutinho da Silveira
Advogado Criminalista e sócio fundador do escritório FS Advocacia, Especialista em Direito Penal & Criminologia pela PUCRS, em Direito Penal Econômico e Europeu pela Universidade de Coimbra, Portugal, em Ciências Criminais pela UFPA, em Direito Penal Tributário pelo IBET/IBDT, Reconhecido em diversas oportunidades como um dos advogados mais admirados do Brasil na área penal e no setor de mineração pela Revista Análise 500 Advocacia, Vice-Presidente da Abracrim/PA.

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