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O Cavalo sem Rabo

Quando o Cavalo sem Rabo apareceu, nem demos conta da estranheza do apelido. Foi num grupo de WhatsApp de condomínio, vizinha A pedindo à vizinha B indicação de pessoa que fizesse transporte de móveis, coisa pouco, coisa pequena, somente levar umas tralhas daqui para lá. Cavalo sem Rabo surgiu dessa forma, sem nome ou personalidade, e assim ficou até que precisamos de serviço idêntico, levar uma cama na casa da sogra, dois quarteirões distante. 

 

Foi a esposa quem lembrou da indicação. Eu que tratei do contrato, tudo bem simples. O homem poderia fazer o transporte e estaria disponível no dia seguinte. Sobre o preço, na hora, a depender de distância e de trabalho, determinaria o valor. 

 

Então, dia seguinte, hora marcada, toca o interfone e já ali havia o porteiro que mal continha o riso diante do anúncio a ser feito: “o senhor Cavalo sem Rabo está aqui”. Mandei subir, realmente incomodado com o escárnio que mal se escondia. Logo depois bateu à porta um senhor negro, suado e bem vestido, uns cinquenta e tantos anos nas rugas, dono de sorriso sincero e cativante. Ele foi justo em relação ao trabalho que teria, e ainda mais justo em relação ao preço. 

 

Não houve medo de trabalho, Cavalo sem Rabo que meteu a cara no que tinha a fazer e logo estava na rua arrumando o móvel de forma cuidadosa numa carroça estacionada em frente ao prédio. Carroça dessas que ainda se encontra muito por Belém. Carreto de mão, dizia minha avó. Carroça de madeira com estribo e tudo, fora o fato de que faltava o cavalo, ou não faltava… 

 

O cavalo era o homem negro, suado e bem vestido, que não parava de sorrir e de movimentar o mundo. 

 

Foi nessa hora que caiu a ficha com peso horrendo na consciência. O cavalo homem não tem rabo mesmo, pensei, e lembrei de quantas vezes ouvi de uma tia que devia estudar, “ou acabas puxando carroça”, figuras tão presentes nas ruas da cidade em trabalho honesto e duro, de forma tosca utilizado para amedrontar o menino talvez relapso com os estudos.

 

Aquele homem e seu ganha pão era a materialização de todas as ameaças que me fizeram – nas garras familiares – o subsolo da vergonha e do fracasso do qual “escapei”, ele não. 

 

Por fim, informo: 

Se chama Augusto. Tem 56 anos. É carroceiro desde 1976 quando ficou desempregado. Com a indenização construiu a casa onde mora até hoje e comprou sua primeira carroça. Nunca mais parou com suas andanças. Ajudou a mulher a estudar – hoje é professora. Criou e formou quatro filhos. Melhorou a morada e comprou um terreno na beira do rio de sua infância, na cidade de sua nascença. Nunca roubou. Nunca foi desonesto. Já puxou móvel do Jurunas até São Brás, até a Pedreira e até o Entroncamento. Não sabe quantos quilômetros faz por dia, mas acredita que faz mais do que vinte. Gosta do que faz, mas.

 

– Mas seu Augusto, e esse apelido?

– Ah, eu detesto.

– E como surgiu?

– As pessoas me viam na rua puxando carroça e parece que gostam de humilhar, sabe? Virei bicho, pois não devo ser homem somente porque trabalho fazendo carreto…

– E nunca pediu para pararem com isso?

– Só se fosse para brigar com o mundo – completou em meio ao sorriso que não se perde. 

 

O homem negro, sempre suado e bem vestido, exemplo usado para ilustrar os possíveis fracassos de vidas, os exemplos dados nas minhas garras familiares, e que mesmo virado bicho conseguiu tanto na vida em trabalho honesto e penoso.  

 

Se acostumou…

 

Ou vivia brigando ou assumia a condição imposta de animal, pois a carroça já estava ali, o carrinho pesado que aguenta peso de sofá, geladeira e mudança inteira, mas, sobretudo, dificilmente aguenta o peso da honra do homem orgulhoso e agradecido, cavalo sem rabo das maldades humanas que ainda se encontram muitas pelas ruas da cidade.

 

Fernando Gurjão Sampaio, advogado e escritor, paraense de Belém, é autor de “Ladir Vai ao Parque e outros contos”, e ganhador do Prêmio Seivas, da Fundação Cultural do Pará.

Márcio Ponte

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