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Era uma cidadezinha, pra bem dizer um lugarejo perdido no interior desta Amazônia de Deus. Quando muito, talvez, umas cinco ruas sem um resquício de pavimento. Nem notícia de televisão, novidades chegavam no rádio de pilha. Havia só uns dois aparelhos, em torno de onde a mulherada se juntava pra ouvir “Meu Destino é Pecar”, novela dramalhão onde imperavam todas as traições e cornices. Nunca se soube explicar se a vidinha, antes tão pacata, das senhoras daquele fim de mundo, mudou de ponta cabeça por causa da tal novela ou se já vinha de muito tempo. O fato é que a notícia de que todas pulavam cerca, ou pelo menos a maioria, se expandiu e era motivo de grande comentário nas redondezas.
Os maridos saiam pra pescar, pro roçado, e as esposas ficavam dando à vontade pra quem aparecesse. Uma loucura. A fama ruim do lugarejo ia que ia se distanciando até pras lonjuras da capital. Tudo verdade? Vá saber, sempre há muita falança, mas onde há fumaça, dizem, sempre corre risco de brotar algum incêndio.
Para quem se avizinhava do lugar, a única obra vista de longe era a torre da velha caixa d’água, idosa ainda dos tempos do interventor Magalhães Barata. Estragada de tanto buraco, não acumulava nem mais água de chuva, que dirá daquela bomba a vapor que há muito os pedaços já andavam ao léu, servindo de âncora pra canoa. A tubulação de ferro estava tão carcomida como a administração pública, visto que a cidade carecia de um prefeito. O último havia fugido para Manaus com a mulher do vice que, de tão desgostoso, um dia subiu na dita torre da caixa d’água e de lá se atirou pra eternidade. E tome falança pra borbulhar ainda mais a triste sina da cidadezinha. Quem quisesse água que fosse buscar no rio, de lata nas costas, a bom sofrer escorregão pela ribanceira. Ah tempo difícil…
O fato é que o prefeito se mandou com a mulher do vice e depois que este se suicidou, ninguém quis assumir o lugar. O poder estava vago, cada morador que cuidasse do próprio quintal. Só seu Junqueira, com sua solteirice mal disfarçada (melhor não seria dizer forçada?), cuja esposa, até então exemplo de dona de lar, tinha se enrabichado com um marchante de boi, ainda era quem tinha a palavra mais lúcida sobre a tal vacancy do poder:
-Foi culpa dessa tal de “Meu Destino é Pecar”, seu moço, mexeu com os grelos dessa mulherada. E quem havera de querer assumir esta porcaria de prefeitura sem ao menos um vintém pra roubar?
A vida rolava, seu Junqueira saía todo dia em busca duma caça pra matar a fome. Não tinha mulher ao alcance da rede e atamancava a necessidade com a patroa do compadre Joãozinho, quando ele saía zagaiando de noite com uma lanterna de carbureto. Quando não, se socava pro mato, subia o morro donde avistava a cidade inteira e se aliviava escondido numa velha égua de estimação.
Pois foi que um dia, muito afastado de casa e cansado do ombro de tanto carregar uma paca abatida, que aconteceu do seu Junqueira encontrar aquele ninho de urubu-rei, onde viu aquele filhote ainda com a penugem branquinha. Levou o bichinho pra casa e foi criando ele com carinho de família. Não demorou ficar um urubusão forte, veio a vontade de voar e a ave até já ensaiava uns treinos curtos pelo quintal. Aí, um dia bem cedinho, comovido com a aflição do amigo naquele bater de asas, seu Junqueira teve uma brilhante idéia: levou o urubu-rei lá pra cima do morro. Com todo jeito, teve uma conversa com a ave.
– Meu preto – seu Junqueira chamava o urubu de meu preto – olha lá pra baixo, tá vendo essa cidade de má fama? Será que ainda tem uma mulher que presta naquele casario? Hoje vai ser teu primeiro voo. Vai até lá voando, meu preto, pousa na casa de uma mulher honesta e volta aqui pra me contar.
Dito isso, ele deu um impulso de ajuda e largou o urubu-rei no vazio.
– Vai meu preto – gritou seu Junqueira – te espero dentro de uma hora.
Sozinho e inseguro, o lindo urubu-rei claudicou meio sem jeito a ponto de quase se arrebentar num galho de papa-terra, mas logo tomou o rumo certo e ganhou o firmamento.
A gente fica sabendo de uma linda história de amizade como essa e só acredita que ela era possível num tempo em que o xiitismo ecológico ainda não imperava nesses rincões da Amazônia.Hoje, vá alguma autoridade desse meio saber que um homem cria um urubu de estimação, que logo dá parte e o cara acaba no xilindró.
Mas o urubu-rei tinha uma difícil missão e alçou vôo. Seu Junqueira ficou observando o planar elegante da ave, até ele sumir de vista no meio do casario da vila. Deu nove horas, conforme acertado, e ele não voltou. Deu dez, deu onze. Lá pelo meio-dia, seu Junqueira começou a ficar preocupado. Será que seu estimado urubu tinha fugido? Algum moleque tinha balado ele? Correu pra cidade e haja andar à procura da ave. Bordejou por riba dos telhados e nada do urubu. Já ia meio choroso e pensativo de alguma desgraça que pudesse ter acontecido, quando levantou a vista pro céu e se encheu de contentamento: o “meu preto”, desiludido e cansado de tanto voar à procura da dita mulher honesta, estava pousado lá na guia da velha caída d’água.

Ademar Ayres Amaral
Engenheiro e Escritor.

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