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Amanda nunca definiu, exatamente, a partir de qual dia Hildebrando passou a curtir a mania de criar peixinhos em aquário. Na realidade, isso não tem a menor importância. O fato é que, ainda na época de namoro, quando passeavam de mãos dadas pelos labirintos do Museu Goeldi como dois pombinhos apaixonados, longos beijos e juras de amor eterno sob a frondosa samaumeira, Hildebrando não perdia de fazer uma visitinha ao aquário. E lá ficava perdido no tempo, admirando o doce passeio dos peixinhos.

-Amanda, olha, que bonito.

Pra dizer a verdade, verdade verdadeira e inexorável, Amanda não achava graça nenhuma naquilo.Criar peixinhos em aquário, pra ela, era mesmo que prender passarinho em gaiola: tipo da mania besta. Mas, ao invés das reclamações, nessas horas de lirismo ela costumava brincar, parodiando Olavo Bilac, e mandava outra versão melosa do “Pássaro Cativo”:

“Armas, no fundo do rio, um alçapão.
E em breve, um peixinho descuidado,
Batendo o rabo, cai na escravidão”.

Como Amanda não manjava nada de alçapão e nem Hildebrando do nosso poeta parnasiano, a coisa terminava sempre com carinho e na base do afago.

-Você tem vocação pra poetisa.

Ela, convencida:

-E você é minha eterna “expiração”.

Com peixinho ou sem peixinho, Amanda aceitava tudo, pois, como qualquer mulher apaixonada deste miserável planeta, o que mais mesmo ela desejava na vida era arranjar um marido e fazer um filho para não se deprimir. Além do mais, gostar de peixinhos não chega a ser das piores coisas do ser humano.
Resumo: casaram depois de um ano entre o período de namoro, noivado e algumas discretas escapadas num motel do Coqueiro.
No princípio, como sempre acontece, foi aquela maravilha de vida. Como dois peixinhos apaixonados eles viviam um belo romance no seu aquário de amor. E Hildebrando tratou de aproveitar o mais que pôde daquele filé. E Amanda não era uma espécime qualquer, sejamos claros, era o chamado peixão. Digamos que sem qualquer detrimento ao colunável filhote, que na região do baixo amazonas não passa de uma desprezível comida de cachorro, Hildebrando a saboreava da cabeça à ponta do rabo como se degustasse uma incomparável pirapitinga assada.

Passados alguns meses, Hildebrando chega um dia do trabalho, carregado de bagulho: vidro, cola, bomba de ar e plantinhas aquáticas.

-Que é isso, filhinho? (Ela ainda o chamava assim).

-Ahn?

-Isso …

-Vou fazer um aquário, criar peixinhos, livrar o stress.

Não sabendo também nada sobre o significado da palavra stress, Amanda fez muxoxo e foi tratar de terminar o bife acebolado.
O aquário bem montado passou a fazer parte da decoração da sala, e seus primeiros habitantes logo começaram a chegar: acará-disco, acará-severo, apaiari, limpa-fundo, limpa-vidro, telescópio e outros mais. Hildebrando ficava horas, depois do jantar, separando os briguentos, organizando a desova, dando comidinha ou, simplesmente, admirando seus peixinhos no vai-e-vém.

-Beeemm, vem já deitar.

-Estou indo, olha, amor, olha o “véu de noiva”.

Amanda acabava adormecendo.
Aí Hildebrando construiu outro aquário, mais outro e outro. Por fim, fez um grande, pegando a parede inteira da sala, onde colocou um belo e ameaçador exemplar de traira.
Certa noite, depois de ficar longas horas a contemplar seus aquários, ele sobe e encontra a esposa ainda acordada, numa resumida camisola. Senta na beira da cama.

-Que coisa linda.

Amanda rola para o lado procurando o melhor ângulo que destacasse suas maravilhosas partes íntimas. Hildebrando prossegue como se estivesse em outro planeta:

-Lindo, o “Beta Splends”.

-Beta o quê?!

-Beta Splends, aquele peixinho de rabo comprido que eu comprei hoje no japonês.

Amanda explode:

-Beta-não-sei-o-quê, é a mãe!

Pulou da cama como uma gata no cio e colocou a mão espalmada no gogó.

-Já estou farta, até aqui, não agüento mais essa história de aquário! – e foi dormir na sala.

Dia seguinte, Hildebrando chega para o almoço trazendo um buquê de rosas vermelhas. Aparentando estar mais calma, Amanda aceita o presente e recebe o marido com beijinhos e sorrisos. Nesse clima, o almoço é servido.

-Hum, deliciosa esta moqueca. Que peixe é?

Ela, fazendo um gesto de indiferença:

-Traíra…

Hildebrando treme, é tomado de uma palidez defuntícia.

-Traíra? Você disse traíra?

Corre para o aquário e constata a tragédia. Transtornado, grita como um cão hidrófobo.

-Minha traíra! Minha traíra!

Vai até o quarto e retira o revolver do criado mudo.

-Amanda, venha cá!

Colérico, encosta o trabuco na cara da mulher.

-Sua desgraçada! Agora come, come todos sem mastigar!

Assim, um por um, os peixinhos foram engolidos por Amanda, sem piedade e sem ajuda de um mísero copo d’água. Mais de vinte, desde o pobre limpa-fundo até o admirável Beta Splends.

-Agora, sua vagabunda, rua! rua!

Amanda saiu sem rumo e andou horas pelas ruas desta abençoada Santa Maria de Belém do Grão Pará. Quando, finalmente, deu por si, estava vomitando em plena Praça da República, rodeada por uma pequena multidão que apreciava a estranha cena. É que os peixinhos, ainda vivos e batendo os rabos, escorriam pelo seu corpo e davam vida ao seu vestido branco, num vistoso colorido de paisagem tropical.
Depois veio na hora certa aquele aguaceiro de todas as tardes e levou tudo.

Ademar Ayres Amaral
Engenheiro e Escritor.

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