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Bom, pra início de conversa, eu vou logo avisando que carnaval não mexe mais comigo. Anda muito longe a fase das festas infantis da ARP, que eu frequentei na companhia do meu dileto amigo Célio Simões e daquela nossa namorada de então. Nem mais saudade das festas da adolescência, quando eu me esbaldava em boa companhia e sem a ameaça do Célio, nos nobres salões do badalado Centro Recreativo de Santarém. Agora, prefiro aproveitar os dias do senhor momo para ficar quieto no meu canto.
Este foi o quinto carnaval que eu e minha esposa aceitamos o convite de um casal de velhos amigos, para ficar descansando no belo sítio deles, a alguns quilômetros de Belém. Levo sempre um bom livro (desta vez, Quincas Borba, do insuperável Machado de Assis), uma rede larga o suficiente para não sobrar o pé, e assim me mantenho por quatro dias, qual um urso polar em plena hibernação. No máximo, quando muito, dou uma espiada de esguelha( ou à socapa, como escreveria o bruxo do Cosme Velho), na televisão, para apreciar os movimentos hiperbólicos de alguma mulata rebolativa na avenida. Fora isso, joguei conversa fora, apanhei manga pra comer com canivete debaixo da árvore, me distraí matando mosca com uma moderna raquete elétrica e ouvi algumas histórias.
A melhor de todas me foi contada pelo casal de amigos do qual eu e minha esposa fomos hóspedes, e o enredo aconteceu alguns meses antes do carnaval, quando eles viajavam, uma noite, no rumo do sítio. Antes, vamos logo explicar que esse meu amigo é médico conceituado na capital, homem sério de quem nunca ouvi dizer isso-assim-zinho (ainda se escreve com hífen?) que seja sobre alguma mentira contada, e muito menos dá pra duvidar do que ele disse, de vez que o episódio teve por testemunha sua própria esposa.
Meu amigo comprou o sítio há muitos anos e acabou fazendo grande amizade com a população do lugarejo, e muito contribuiu para isso sua condição de excelente clínico geral, fazendo com que ele acabasse por abrir um consultório na sede do município, onde atende gratuitamente a quem o procura. Sai de Belém toda sexta-feira cedo e vai direto para seu consultório da estrada. Ao chegar, já o espera uma longa fila de gente e sua prestimosa esposa lhe presta ajuda como voluntária na organização dos atendimentos. O casal almoça por lá mesmo e só toma o caminho do sítio, para o merecido descanso de fim de semana, quando termina de atender o último paciente, muitas das vezes já vendo a lua alta.
O que ele me narrou, e que eu passo igualzinho a vocês, aconteceu quando meu amigo e a esposa se dirigiam ao sítio, após mais uma dessas sestas-feiras de estafante trabalho. Deixaram a sede do município e pegaram a BR para alcançar o ramal que os levaria ao sítio, a uns dez quilômetros de distância. Já tinham vencido metade do percurso e conversavam animadamente, quando a luz potente da caminhonete Hyllux, bateu num vulto todo de branco a uns duzentos metros de distância.
– Olha ali – apontou a esposa – não parece o personagem daquela da música do Erasmo?
– É – brincou o médico – sentado à beira de um caminho.
No que se aproximaram, assistiram surpresos o homem de branco se levantar do acostamento e caminhar alguns passos até o meio da pista. Lá se postou em posição de sentido e ergueu os braços para o céu, como se tentasse barrar a passagem do carro.
– É assalto! Te segura ! – gritou meu amigo para a esposa.
Segurou firme na direção e sentou o pé no acelerador fazendo o carro disparar. Ao chegar a uns dez metros do homem de branco, meu amigo abaixou a cabeça para se proteger do impacto, ainda a tempo de ouvir o grito desesperado da esposa:
– Meu Deus, é seu Pedro! É seu Pedro !
Como não houve nenhum barulho de impacto nem sinal de cadáver estendido no asfalto, meu amigo continuou em disparada até o sítio, onde tratou de cuidar da esposa, que estava em total estado de choque. Finalmente, após cuidados de emergência e alguns calmantes, ele criou coragem e indagou:
– Por Deus, me explica quem é o tal Pedro que você viu?
Ela, ainda trêmula, esclareceu:
– Ora, era aquele pedreiro que fez serviço aqui no nosso sítio. Faz uns três meses que ele foi atropelado. Vinha de bicicleta, naquele pedaço, quando um caminhão passou por cima dele.

Ademar Ayres Amaral
Engenheiro e Escritor.

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