0

A minha formação musical foi quase toda resultado da convivência doméstica com meu pai, além, é claro, de uma boa pitada de muita leitura, audições e a vivência do cotidiano. Quando universitário de direito (por volta de 1969), fiz um rápido curso de harmonia com o Maestro Francisco Mignone, em Belém. O resto, creio, é dom que Deus nos concede.

Durante dois anos (1962-1963), fiz um curso intensivo (pois já tinha iniciação musical razoável) no Conservatório Musical “José Maurício”, da Profª. Rachel Peluso. Ali também estudou, mais tarde, a pianista paraense Ana Maria Adade.

Rachel Peluso proporcionou-me estudos gratuitos no seu Conservatório, pela amizade que tinha com a nossa família e como uma espécie de gratidão, segundo ela própria, porque tocou piano, quando jovem, em Santarém, na Orquestra “Tapajós”, de meu avô José Agostinho da Fonseca, que lhe dedicou a valsa “Rachelina” (1922). A belíssima valsa “Rachelina”, que integra, desde há muito, o repertório de Bandas de Música, na terra querida, recebeu letra do poeta paraense João de Jesus Paes Loureiro, em 1996, quase 75 anos após a criação da música. E Rachel, com 89 anos de idade, incluiu esta valsa (a título de homenagem da compositora ao meu avô, seu maestro da juventude) no seu CD “Quis Fazer-Te Uma Canção”, lançado, em outubro de 1997, em Belém, no Núcleo de Artes da Universidade Federal do Pará, quando ela aqui esteve, mais uma vez, em companhia de sua irmã, a soprano Gioconda Peluso.

O CD duplo (na verdade, o primeiro e único de Rachel Peluso), contém 40 peças, dentre as quais 26 canções interpretadas por Vânia De Carli Cestari, Béla De Castro Tosato, Áurea Lopes Covelli (sopranos) e Mário Bruno Carezzato (barítono), todos ex-alunos seus e de sua irmã Gioconda. Em todas as faixas do disco está a própria Rachel no acompanhamento, ao piano. Nas outras 14 faixas, a compositora santarena atua no piano solo. Rachel Peluso, com quase 90 anos de idade, era muito dinâmica: compunha, tocava, viajava, gravava. E sonhava… Sonhava muito… Era muito idealista.

Durante o curso que fiz em São Paulo, na década de 60 do século XX, Rachel Peluso não só me ofereceu a gratuidade, como ainda me fornecia alguns álbuns de música, teoria, solfejo etc., além de permitir que eu estudasse as lições de piano em sua própria casa, porque eu não dispunha do instrumento na ocasião. Ela foi a minha “mãe musical”.

À Profª. Rachel Peluso eu dediquei a minha “Valsa Santarena nº 39”. E para a sua irmã Gioconda Peluso (excelente soprano – acho que foi a melhor soprano que já ouvi), dediquei a “Valsa Santarena nº 41”.

Além de brilharem em São Paulo (Rachel, como compositora; e Gioconda, como soprano), elas apresentaram-se no exterior, como Argentina e Itália (eram descendentes de italianos).

Paraense, de Santarém, Rachel era apaixonada por sua terra natal. Uma vez, quando eu era seu aluno, em São Paulo, ela me pediu que lhe arranjasse um pajurá – fruta que quase só existe em Santarém –, para que pudesse saboreá-la aos pouquinhos… E assim foi feito. Ela gostava das nossas coisas, o que se refletia na sua obra musical.

Rachel compôs o Hino Oficial da Assembléia Legislativa do Pará e diversas outras músicas, como várias peças para piano, destinadas a crianças.

De outra feita, quando esteve em Belém, por volta de 1985, Rachel Peluso solicitou-me, para exame, algumas de minhas “Valsas Santarenas” (1 a 24; atualmente são 60 valsas desta série). Pouco tempo depois, ela enviou-me uma carta, com a devolução das partituras das valsas. Na oportunidade, a musicista santarena fez não apenas uma abalizada análise daquelas minhas composições, como também sugeriu diversos subtítulos para cada música, todos muito sugestivos e que lembram as nossas raízes amazônicas.

Rachel Peluso recomendou que a série daquelas 24 Valsas Santarenas fosse reunida sob o título de “Coleção Santarena”. Ela revelou-me que os subtítulos foram inspirados após ela mesma tocar, ao piano, cada uma dessas peças, quando pôde melhor sentir o espírito e o clima de cada composição.

Confesso que guardo com muito carinho esse tesouro, que considero uma verdadeira relíquia, porque se trata de material escrito do próprio punho, pela querida e saudosa amiga, compositora e conterrânea, sobre os manuscritos de minhas composições. Ela ainda sugeriu a colocação de alguns pedais e outros sinais de dinâmica para as peças, haja vista o seu propósito e dedicação no sentido de aperfeiçoar as composições de seu ex-aluno.

Em 2005, compus a “Valsa Santarena nº 55”, com arranjo para coral e orquestra, dedicado aos músicos da Casa de Cultura Santo Amaro, de São Paulo, onde existe a “Sala Rachel Peluso”, dirigida pela Profª. Sílvia Luisada, que me encomendou a composição musical. Neste ano de 2007, fiz nova orquestração para aquela composição, a pedido da Maestrina Sílvia, que me comunicou que a peça deverá ser executada, em primeira audição, num Festival que ocorrerá em Bragança Paulista, no mês de julho próximo, pela Orquestra Filarmônica Santo Amaro.

Na verdade, fiz esta música inspirado na figura da Profª. Rachel Peluso, pois a última vez que a vi, em vida, foi em 02.05.2004, justamente em seu aniversário, quando ela completava 96 anos, e era inaugurada, na Casa da Cultura de Santo Amaro (SP), a “Sala Rachel Peluso”, ocasião em que ali compareci, acompanhado de minha esposa Neide, a quem Rachel e Gioconda queriam muito bem.

Rachel Peluso nasceu em Santarém, em 02.05.1908, e faleceu em São Paulo, em 04.04.2005, com 96 anos de idade, ainda lúcida. No próximo ano de 2008 transcorre o centenário de nascimento da notável compositora santarena.

Salve, Rachelina!

Vicente Malheiros da Fonseca
Vicente José Malheiros da Fonseca é Desembargador do Trabalho de carreira (Aposentado), ex-Presidente do Tribunal Regional do Trabalho da 8ª Região (Belém-PA). Professor Emérito da Universidade da Amazônia (UNAMA). Compositor. Membro da Associação dos Magistrados Brasileiros, da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho, da Associação dos Magistrados da Justiça do Trabalho da 8ª Região, da Academia Brasileira de Direito do Trabalho, da Academia Paraense de Música, da Academia de Letras e Artes de Santarém, do Instituto Histórico e Geográfico do Pará, do Instituto Histórico e Geográfico do Tapajós, da Academia Luminescência Brasileira, da Academia de Música do Brasil, da Academia de Musicologia do Brasil, da Academia de Música do Rio de Janeiro, da Academia de Artes do Brasil, da Academia de Música de Campinas (SP), da Academia de Música de Santos (SP), da Academia Paraense de Letras Jurídicas, da Academia Paraense de Letras, da Academia Brasileira de Ciências e Letras (Câmara Brasileira de Cultura), da Academia Brasileira Rotária de Letras (ABROL) - Seção do Oeste do Pará, da Academia de Música de São José dos Campos (SP), da Academia de Música de São Paulo. Membro Honorário do Instituto dos Advogados do Pará. Sócio Benemérito da Academia Vigiense de Letras (Vigia de Nazaré-PA).

História de Quarta-feira de Cinzas

Anterior

Do Barroco ao Contemporâneo

Próximo

Você pode gostar

Comentários