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No meu tempo de criança, ainda morador ribeirinho do Paraná da D. Rosa, minha família tinha o costume de passar alguns períodos importantes do calendário obidense. Salvo qualquer lapso de memória, os que mais sobressaiam eram os seguintes: o carnaval dos mascarados fobós, a imperdível festa de Nossa Senhora Sant’Ana, a semana da pátria e o dia de finados.

Essas viagens de pouco mais de duas horas em lancha a vapor, eram cuidadosamente planejadas pela minha avó Nila, viúva honrada e mulher poderosa de muito pasto e fartura de gado. Ela enxotava todo mundo da rede às três horas da manhã e botava logo os empregados para carregar a grande quantidade de bagagem. Cada período em Óbidos, por mais curto que fosse, era sinônimo de quase mudança, tantos eram os bregueços: paneiros e mais paneiros com carne de sol, pirarucu seco, latas de mixira, de banha de porco, gaiolas com periquitos, papagaios, rouxinóis e mais um bando de gente formado por empregadas, cunhantãs e moleques serviçais. Nesse movimento todo e mais o trabalho do foguista colocar lenha e pressão na caldeira da lancha, acabávamos saindo não antes das sete da manhã, prevenidos até para um dilúvio que porventura chegasse.

Em Óbidos, morávamos numa imensa casa com quase um quarteirão de quintal, onde nos perdíamos o dia inteiro nas brincadeiras.Lembro do imenso pé de tamarindo que não sei se ainda existe, dos cajueiros, do abieiro cuja fruta grudava na boca, da pitombeira e de uma outra espécie que, daquela época até nossos dias, eu nunca mais encontrei igual: um sempre abarrotado pé da melhor pitanga. O esconderijo dessa infância com sabor de pitanga, ficava próximo da antiga usina de luz, sempre rangendo seus dois potentes motores Caterpillar às seis horas da tarde em ponto, e apagando, impreterivelmente, às dez da noite para consolo de alguns namorados. Os encontros eram marcados “no muro do quartel, depois da usina”. É também desse tempo a mais remota lembrança que eu guardo da Felizmina. Mais na frente eu volto a falar sobre ela.

Não apenas para alegria dos namorados noturnos, Óbidos se orgulhava de ter um belo quartel. Prédio histórico onde hoje funciona uma das secretarias da prefeitura, ele foi salvo da morte, mas perdeu a altivez e não ostenta mais o passado glorioso de outras épocas. Havia o avião catalina da Panair, sempre uma vez por semana, surgindo, de repente, das bandas do porto de cima, para deslizar suavemente de barriga nas águas barrentas da garganta do Amazonas e deixar atrás de si um rastro alvo de espuma e vapor. Hoje Óbidos tem um aeroporto mal cuidado e raramente aparece um avião. E quem desejar conhecer as “frias” colinas obidenses, mirar a graciosa Serra da Escama, ou mesmo ter o prazer dum cacho de pitomba numa tarde preguiçosa, ou freta pelos olhos da cara um teco, em Santarém, ou vai penar um monte de horas no barco da linha. É o que eu sempre faço. Não tenho dinheiro pra fretar teco-teco e nem muita coragem. E, dizem os mais antigos, tirando alguns rapineiros da coisa pública, não havia na cidade um único e escasso ladrão.

Os dias de finados eram de muito movimento. Minha avó preparava tudo de véspera, indo dia seguinte, no rumo do cemitério, com um verdadeiro séqüito composto de parentes, empregadas desfilando grinaldas, carregando cadeiras de balanço, bilha com água e outros apetrechos, para o plantão de dia inteiro no túmulo do avô que eu não conheci: o coronel, de beira de barranco, Joaquim Gomes do Amaral. Ali, sentada comodamente, a matriarca conversava, recebia amigos, às vezes dava uma descompostura e almoçava pirarucu com farinha. Quando o assunto era a próxima enchente do rio, nunca faltava a figura impoluta do velho Podaliro Lobo de Souza, no seu infalível traje de camisa manga comprida abotoada até os confins do pescoço, e o inseparável chapeuzinho de palha. Falava-se de tudo um pouco, os mortos, ora bolas, escutavam silenciosos e carentes de oração, os coitados. Fosse carregando uma grinalda, palpitando na conversa, ou simplesmente acompanhando os movimentos, lá também estava pelo meio, com uma lágrima brotando, a figura super prestimosa da Felizmina.

E grande festa da padroeira Sant’Ana? Lembranças mil da procissão dos barcos despejando o povaréu nas ladeiras da cidade. Imagem particular e santificada das Filhas de Maria, com suas vestes de brancura angelical adornada por uma enorme faixa de cetim azul em volta da cintura. Muito da reputação das moças era medida pela congregação religiosa a que pertencia. Ser Filha de Maria, por exemplo, era como ter um certificado de virgindade e alta cotação no meio, menos pra vó Nila que nunca foi de muita rezadeira. Aliás, em matéria de oração, ela só me ensinou uma : “a cruz de Cristo está sobre mim, quem morreu nela responda por mim”. Rezada com fé antes de dormir, ela jurava que nenhum capeta se atrevia a chegar perto.

-E esse negócio de Filha de Maria – dizia ela – é desculpa de mulher que não teve jeito de arranjar marido.

Pois bem. Vamos logo dizendo que a Felizmina era a Filha de Maria mais famosa e conceituada de toda Óbidos. Séria, honestíssima, de moral acima de qualquer suspeita. Era, porém, muito feia, magérrima, mal acabada e falava metade pelo nariz. Difícil mesmo arranjar um pretendente.Um dia, faz alguns anos, eu vi a Felizmina meio sem rumo, em Belém, caminhando com grande dificuldade e andando com o olhar perdido pela Praça da República. Não sei se ainda é viva. Estava esquelética, corcunda da coluna e mais parecia uma espingarda velha, dessas que já perderam a culatra e a pressão de tiro. Fiquei olhando de longe e imaginando sobre esse terrível inimigo de todos nós: o tempo.

Mas a coisa que mais marcava a Felizmina naquela Óbidos de antigamente, era sua mania quase patológica de mandar encomenda para uma irmã casada que morava em Belém. Bastava descobrir alguém que fosse para a capital e tome encomenda. Certa vez, até um embrulho de jaraquí frito acabou viajando. E todos, logicamente, viviam correndo da Felizmina.

Eis que um belo dia, fazendo visita de fim de tarde a figura importante da cidade, ela depara com um nobre deputado que se encontrava em pleno furor de campanha política pela reeleição. No meio do papo, ele solta, inadvertidamente, que ia viajar no dia seguinte pelo catalina, o que bastou para receber a proposta de levar “uma encomendinha” pra Belém. Pedido irrecusável pelo momento da campanha e pela ânsia do voto. Felizmina era eleitora e de família numerosa.

Dia seguinte, embarca o deputado dando adeus da canoa no rumo do avião. Debaixo do braço o tal embrulho recomendado da Felizmina. A aeronave decola, passa uma hora de vôo monótono e a curiosidade do parlamentar é despertada para a encomenda. Resolve abrir o pacote. Dentro do embrulho, um bilhete e um vidro grande, cuja cor do conteúdo excitou de imediato o paladar de sua excelência.

– “Hum, nossa, doce de tamarindo” – pensou.

Esquecendo o bilhete e quase babando de vontade, discretamente desenrosca a tampa escondendo o vidro por baixo da cadeira de vime. Mete o dedo indicador tirando boa quantidade e enfia rapidamente na boca. Ato contínuo, joga o vidro e sai gritando desesperado pelo corredor, a ponto de quase botar as tripas pra fora.

– Merda! É pura merda!

Foi um bruto dum corre-corre, a maior fedentina que jamais se teve notícia dentro de um avião. E tudo aconteceu, justamente, porque o nobre deputado não leu o diabo do bilhete da solteirona. Tivesse o cuidado de ler, o tal vexame nunca que teria ocorrido. Aqui vai o teor da missiva com todos os esses e erres :“Mana, por mão própia, vae o material colido de madrugada pru exame do laboratório. Dis pru doutô que o purgativo usado foram as Pírulas da Vida do Dr. Rossi. Sinceramente, já não sei mais qui faço presta minha prisão de ventre. E por favor, não vamo esquecê um votinho de agradecimento pru nosso quirido e simpático deputado. Da mana sempre saudosa, Felizmina”.

A notícia estourou como uma bomba e o episódio logo virou assunto folclórico e preferido nas rodas da cidade, de lá espalhando-se por todo o baixo Amazonas. O envergonhado deputado nunca mais deu as caras em Óbidos, e passou a ser conhecido em toda a região como o “deputado come merda”.

 

Ademar Ayres Amaral
Engenheiro e Escritor.

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