Piano piano si va sano e lontano. Ou: de grão em grão a galinha enche o papo. Uma frase que eu queria que se aplicasse a mim. Acho incríveis as pessoas que focam em um único objetivo. Não é meu caso, porque sou impaciente, afobada e, embora tenha dificuldade em fazer várias coisas ao mesmo tempo, estou sempre fazendo várias coisas ao mesmo tempo. Quem nunca? Enquanto sou mãe quase vinte e quatro horas por dia, brigando com o relógio, nas horas não vagas, alimento meu sonho de adolescência que é escrever e contar histórias. Histórias do mundo das artes. E ai, uma coisa vai levando a outra e eu descobri a artista Maria Martins que, começando pelo fim, morreu há exatos cinquenta anos e fez tanta coisa que não me parece que ela era uma mulher paciente e que se dedicava com afinco a uma única coisa por vez. E não temos mais nada a ver, exceto o fato de que ambas só pariram mulheres e que eu acho que para Maria, não bastava ser mãe. A necessidade de mudar o mundo era tanta que ela, sem a chance de se expressar como artista, estando em um casamento tradicional, se separou do marido em 1925, em um período em que nem divórcio existia para mulheres. Custou a guarda da primeira filha.
Essa ruptura talvez tenha sido um inferno para ela, talvez não, mas fato é que foi o preço para buscar seu caminho como artista tardiamente. Tinha 31 anos. Casou de novo, pariu mais duas filhas mulheres e se tornou a maior artista do surrealismo nascida no Brasil. E se inspirou nas ancestralidades daqui para desenvolver seu trabalho como escultora, naquele período em que ser moderno, no Brasil, era saber olhar para trás e buscar as origens. Não se esqueçam de que eu vim dos trópicos – frase de Maria. Veio dos trópicos, mas foi para o mundo todo. Viajou por vários países em diferentes continentes, entrevistou Mao-Tse-Tung, expôs suas obras em vários museus americanos, entre eles o Museu de arte moderna de Nova York (MoMa). Escrevia. E também era objeto de escrita. Les Statues Magiques de Maria, livro com ensaios de André Breton, o famoso pai do surrealismo. Maria era mesmo surreal. Dominou o bronze e o moldou como nos seus sonhos. Foi livre em um casamento aberto e ter tido um romance com Marcel Duchamp é só um acréscimo a sua biografia, que contempla exposições de suas esculturas em vários lugares, inclusive no jardim do Palácio Itamaraty, a sede do Ministério das Relações Exteriores. O legal é que, ao se inspirar nas lendas amazônicas, virou Maria uma lenda. E tudo isso aconteceu porque ela percebeu, aos 31 anos, que não bastava ser mãe. Mas eu não sei se ela percebeu que para os nossos filhos, também não basta ser a mãe.
Na minha ingenuidade eu achei que ser a mãe bastava para os filhos na primeira infância. Ou pelo menos no primeiro ano de vida. E olha que eu já era uma grávida pé no chão. Nunca acreditei que ser mãe era instintivo e fiz mil cursos. Sono, amamentação, desenvolvimento, parentalidade positiva e mais um monte que me ajudaram na mesma proporção que me atrapalharam. Lembro-me de aprender que o bebê sentia o cheiro e a voz da mãe mesmo distante uns três metros de distância. Acreditei então que bastava ser a mãe. Eu só tinha que exalar meu cheiro e falar para manter tudo sob controle. Afinal, bastava ser a mãe. Surreal. Sabe bebê recém-nascido que só fica tranquilo no colo da mãe? Não sei. Sabe bebê que só dorme no colo da mãe? Não sei. Eu tinha que ficar balançando muito, em pé, para elas dormirem no meu colo. Eu e o pai delas tínhamos até uma cartada final – ridícula – para elas dormirem. Chamávamos de “passada”. O pessoal de academia sabe o que é. Façam a cena mental. Várias vezes elas só dormiam com passada. E tirando o peito, do qual eu fornecia um leite à duras penas para alimentar parcialmente as duas crianças que eu pari ao mesmo tempo, eu e qualquer pessoa do planeta éramos a mesmíssima coisa para elas. Então se passaram quase 15 meses e elas já correm e sabem que eu sou a mamãe, embora só falem “mama” quando estão reclamando de algo comigo. Sou a mãe, mas tenho que agradar. E sinto que o tempo que passou nos ajudou a construir uma relação. Isso envolve fazer passo de dança com elas no colo ou brincar de algo que elas querem. Porque não, não basta ser a mãe. Tem que ter tempo. Tem que saber a linguagem do teu filho. E tem que saber apreciar as demonstrações de carinho que surgem pelas beiradas. Aquele olhar no parquinho para conferir se eu estou lá. Aquele sorrisinho de canto de boca quando eu faço o sinal de que vou fazer cosquinhas. A recusa para tomar mamadeira com a babá. O gritinho incompreensível chamando mama no escuro da madrugada.
Tudo isso para dizer que Maria Martins estava certa. É preciso ter doses de surrealismo e encarar nossos sonhos como realidade. E se ela se tornou uma grande artista brasileira de alcance internacional porque percebeu que não basta ser mãe, eu também percebo que se trata de uma via de duplo sentido. Não basta ser a mãe para os filhos, assim como não basta ser mãe para algumas de nós. Eu preciso ser muito mais coisa para dar conta de ser a mãe que eu quero ser. E apesar de estar sempre brigando com o relógio, o principal eu aprendi que se não se aplicava a mim antes de ter filhas, depois que pari virou um bordão a ser lembrado: Piano piano si va sano e lontano.
Comentários