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Uma das primeiras vezes em que eu percebi que não era tão única foi quando descobri que meu pesadelo mais frequente era um dos pesadelos mais frequentes de todo mundo. Ele me acompanha há décadas e, conforme minha vida avança no tempo, mudam algumas variantes do cenário. Mantém-se o enredo. Na verdade, ele já é tão de casa que não o considero mais pesadelo, embora não possa chama-lo de agradável. Se fosse gente, eu jamais iria atrás dele com aquele papinho infame, de quem tá procurando flerte, dizendo: sonhei contigo esta noite. E olha que eu sonhei muito com ele no último ano. Já percebi que sonha mais quem dorme menos. Assim me diz meu auto estudo de caso empírico, no qual percebo que, após o apocalipse gemelar que se instaurou no meu sono noturno, eu sonho e me recordo na mesma proporção em que levanto na madrugada. Sinto até uma alegria cruel nisso, porque me dá a chance de lembrar-me dos sonhos, mesmo quando eles são pesadelos. Às vezes eu nem sei identificar se a viagem onírica é boa ou má, mas a graça é ficar tentando lembrar-se das coisas surreais vividas na cabeça enquanto não estou no controle. A persistência da memória. Esses dias li que a memória é uma verdade inventada. Achei tão lindo. Parece o tipo de coisa que a gente descobre em uma sessão de psicanálise. E por falar nisso…..

Desculpe-me Carl Jung, eu gosto de ti, apesar de não acreditar em arquétipos, mas tenho que te dizer que interpretar sonhos é chato. Pode ser tudo e pode ser nada. Entre o sonho e a explicação dele cabe o mundo e por isso, quanto aos meus, prefiro ficar só tentando lembrar sem a pressão de explicar. Quem sabe lembrando posso ativar meu consciente a pensar em coisas mais surreais. Uma hipótese. E sempre são coisas surreais né, porque não vale a pena sonhar com coisas banais. Surrealismo, meu movimento artístico preferido, o encontro explícito da psicanálise com a arte. Eu amo o surrealismo justamente por que nem tudo tem que ter sentido, embora tenha.  Nascido e criado nas primeiras décadas do século XX, nos famosos (loucos) anos 20, quando pulsava a efervescência cultural no Ocidente. Filho do dadaísmo, mas com um toque de Freud. Uma coisa que misturava o inconsciente do comportamento humano com sonhos e fluxos de consciência. Misterioso, esquisito, estranho. Ou melhor, surreal. Filho de André Breton, embora o pai que todo mundo conhece seja o Salvador Dalí. E o que eu mais gosto dessa história não são as obras surrealistas, por isso não falarei de nenhuma, mas o fato de ver que o espírito do surrealismo foi incorporado em outros campos como nenhum movimento artístico conseguiu. E o motivo, eu aprendi com Will Gompertz e levo no coração: as palavras importam. Não vemos por ai nenhum escritor ou diretor de cinema se intitulando como pós-impressionista. Mas dizemos que filmes como “Brilho eterno de uma mente sem lembranças” e “Cisne Negro” são surrealistas. Uma palavra que derivou do nome do movimento cunhado por André Breton e fez com que Salvador Dalí e o surrealismo penetrassem até no linguajar infantil. Daqui a pouco minhas filhas estarão me dizendo: mamãe, isso é surreal. Só espero que não seja para me contar que estão sonhando que todos os seus dentes caem ao mesmo tempo da boca.

Figura 1: https://www.artequeacontece.com.br/o-surrealismo-de-leonora-carrington-e-seu-interesse-pelo-taro/
Figura 2: https://www.unr.edu/lilley/leonor-fini
Figura 3: https://revistausina.com/2016/12/29/maria-martins/

Luciana Florenzano
Mãe de gêmeas, arquiteta e urbanista, doutoranda em patrimônio-teoria-crítica, especialista em história da arte, eterna estudante. Gosto de palavras, da arquitetura que é arte e de fazer abordagens transversais. 

Avertano Rocha é Doutor Honoris Causa pela Unama

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