Minhas filhas entraram no último mês do seu primeiro ano de vida. Foi no mês de Dezembro. O ano é 2022, mas eu me lembro do dezembro de vinte e cinco anos trás. Era 1997. Não caiam flocos de neve em Belém e nem ursos dançam no ar, mas são imagens a dançar que eu posso recordar*. Anastásia. Eu tinha oito anos e ali comecei a gostar de histórias. Impérios, guerras e romances. Não era só um filme norte-americano de desenho infantil. Era um musical que, embora seja todo do universo da fantasia, tinha a história de alguém ali na Rússia prestes a passar pela Revolução de 1917. Filha mais nova do último Czar, o Nicolau II, na história real, Anastásia foi assassinada em 1918, aos 17 anos, pelos bolcheviques. Mas sua história ficou. No mês de dezembro. O último do ano mais difícil da minha vida porque pari duas crianças. E se a verdade é que o ano se arrastou e demorou a passar, o plot twist é que ele passou e eu já sinto saudades. Minhas filhas fizeram onze meses de vida nesse mês de dezembro e me ensinam todo dia que o tempo é irreversível. Só dá tempo de ser a gente mesma e não dá mais tempo de querer ser-o-outro. E olha que eu já tinha aprendido com Clarice que o outro dos outros, era eu.
Clarice ainda deu o título “para não esquecer”. Mas Clarice, a gente esquece. Só que poder esquecer é o que nos permite renovar e a dosagem entre memória e esquecimento é o que nos permite o sentido de rememorar. E por isso preservar as coisas e as histórias – nosso patrimônio cultural – não é um gesto distraído. É preciso saber contar as histórias. Porque o passado não se apaga, mas se sedimenta em camadas que se conectam – se a gente quiser. Para contar a história que a gente quiser. E na de hoje eu quero celebrar a alegria e coincidências dos começos e dos fins. Do mês de dezembro. Por exemplo, no dia 5 nascia, em Roma, Achillina di Enrico Bo, que morreu como Lina Bo Bardi, em São Paulo, no Brasil. No dia 10, nascia na Ucrânia, Chaya Pinkhasivna Lispector, que morreria como Clarice Lispector, no mês de dezembro e no Brasil, só que no Rio de Janeiro. Na mesma cidade onde, trinta e quatro anos depois, morreria Fayga Ostrower, que nasceu na Polônia, mas fez história no Brasil e inspirou todos nós, embora seu admirador mais famoso seja aquele que tenha lhe escrito um poema, Carlos Drummond de Andrade. Três mulheres. Artista, escritora e teórica. Três adjetivos que podem descrever cada uma ou todas. Não eram brasileiras e são do Brasil. Mas não posso deixar de falar que também dia 10 de dezembro nasceu Cássia Rejane Eller, que também morreu no Rio de Janeiro, também em dezembro.
Com a Lina eu aprendi que eu podia amar a arquitetura do passado sem rejeitar a do presente, com a Clarice aprendi que liberdade é pouco, com a Fayga aprendi que a criatividade é um potencial próprio da condição do ser humano e, com a Cássia, aprendi que era bonito assumir quem a gente é. Mas de todas essas mulheres inspiradoras cujas datas de vida se cruzam, foi no mês de dezembro, com Anastásia Romanov, que eu aprendi que se os dados são esquecidos, as histórias são lembradas. Basta querer contá-las. Disso eu sempre me lembro*.
*Trecho da Dublagem do filme Anastásia em português, música Once Upon a December.
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