Publicado em: 9 de abril de 2025
“Beba a água da Vila da Barca!” — foi o grito que ecoou no auditório da Fundação Curro Velho, em Belém, na última segunda-feira, 7 de abril, durante uma audiência pública sobre a Nova Estação Elevatória de Esgoto. A frase, dirigida ao diretor da Companhia de Saneamento do Pará (Cosanpa), foi entoada por moradores da comunidade da Vila da Barca, uma das maiores áreas de palafitas da América Latina. O desafio surgiu após o gestor afirmar, diante dos presentes, que consumia água da rede pública e que o serviço prestado na região era de qualidade. Ele se recusou a beber a água oferecida pelos moradores.
A cena foi registrada e compartilhada nas redes sociais do perfil comunitário @viladabarca e expõe o nível de tensão e descrédito da população com o poder público, diante de décadas de negligência no acesso a serviços básicos de saneamento e saúde pública. Moradores relataram que a água que chega às torneiras da comunidade tem coloração amarelada, odor desagradável e aparência duvidosa, agravando-se ainda mais com as recentes obras da chamada “Nova Doca”, projeto urbanístico do Governo do Estado como parte do legado da 30ª Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (COP30), que acontecerá em novembro de 2025, em Belém.
Durante a audiência, lideranças comunitárias anunciaram que pretendem recorrer à Justiça para tentar barrar a continuidade das obras, alegando falta de consulta prévia, riscos à saúde e violação de direitos ambientais e territoriais.
Uma moradora da Vila da Barca, com 50 anos de vivência na comunidade, fez um desabafo contundente, relatando que, desde que iniciou o processo de especulação imobiliária na região, os moradores não tiveram mais sossego. “É luta atrás de luta. E eu tenho pessoas aqui que sabem da nossa história.”
Em sua fala, a moradora rechaçou a ideia de que melhorias estariam sendo feitas na Vila da Barca. Segundo ela, apesar da existência de um projeto de urbanização, a realidade financeira da comunidade permanece inalterada. “É muito fácil o senhor governador querer mostrar uma frente de obra para turista e esquecer uma comunidade que depende de saúde, de saneamento, de educação. Ele deveria olhar para o povo que vai às urnas votar.” Ela criticou ainda a forma como o projeto está sendo conduzido, sem ouvir as mais de sete mil famílias da região, e afirmou que a comunidade não aceitará que uma obra feita para “mostrar trabalho” acabe prejudicando vidas.
A moradora também denunciou os impactos causados pela empresa Arapari, apontada como responsável por agravar as condições ambientais da área. “Essa empresa só trouxe desgraça para nós. Minha neta tem rinite, tem bronquite por causa dos dejetos que ela joga lá. São fedidas, levantam poeira. A gente não consegue nem deixar a porta aberta.” Segundo ela, enquanto empresários lucram com a obra, os moradores adoecem e perdem qualidade de vida. “Respeitem as pessoas humildes. Não subestimem a nossa inteligência.”
Ao final, a senhora deixou um recado direto ao poder público e aos presentes na audiência: “Levem para o governador, levem para o prefeito: a Vila da Barca está totalmente contra. Quem é a favor dessa intervenção? Ninguém levantou a mão.” E completou com um alerta político: “A Vila da Barca, ele vai precisar daqui a um ano. E ele vai ser totalmente crucificado.” A fala emocionada foi recebida com aplausos e reforçou o clima de tensão e resistência diante de obras que, para a comunidade, representam mais riscos do que benefícios.
Em carta-manifesto assinada pela Comissão Solidária da Vila da Barca, Barca Literária e o Museu Memorial da Vila da Barca, a comunidade denuncia um grave caso de racismo ambiental, promovido, segundo os moradores, pelo Governo do Pará e pela empresa Arapari.
“A cidade está sendo preparada para a COP30, mas as obras estão concentradas nas áreas mais ricas, enquanto comunidades como a Vila da Barca seguem sendo negligenciadas. Ao invés de infraestrutura, recebemos lama e dejetos”, denuncia o manifesto.
A comunidade sustenta que o material retirado do canal da Av. Visconde (Doca) de Souza Franco, localizada em uma área nobre da capital, foi despejado de forma irregular na Vila da Barca, sem qualquer proteção ou diálogo com os moradores. A região foi transformada em um verdadeiro depósito de lama, que durante o verão levanta poeira e, nas chuvas, se transforma em lamaçal, gerando condições insalubres para quem vive no entorno.
Outro ponto central da denúncia é a instalação, sem aviso ou consulta à população, de uma nova Estação Elevatória de Esgoto (EEE) em um casarão adquirido pelo governo estadual na comunidade. Segundo os moradores, o local pertencia à empresa Arapari e hoje abriga obras da Cosanpa para tratar o esgoto da Doca, mas não contempla o saneamento da Vila da Barca.
“Não houve apresentação do projeto, não sabemos os riscos à saúde e ao meio ambiente. Queremos saber: essa estação vai beneficiar a nossa rua ou só vai tratar o esgoto da parte rica da cidade?”, questiona um dos trechos da carta.
A revolta da comunidade é maior pelo contexto em que essas transformações ocorrem: a preparação de Belém para receber uma conferência global sobre o clima, cujo discurso oficial é centrado na justiça climática, inclusão e sustentabilidade. Para os moradores da Vila da Barca, no entanto, a realidade vai na contramão desses princípios.
“Não aceitaremos ser tratados como o depósito de rejeitos enquanto os investimentos são destinados apenas às áreas privilegiadas da cidade. Exigimos respeito, transparência e justiça ambiental para todos os moradores da Vila da Barca”, conclui o documento.
Carta-manifesto da Comissão Solidária da Vila da Barca, Barca Literária e Museu Memorial da Vila da Barca sobre o caso de racismo ambiental na comunidade Vila da Barca
“A comunidade da Vila da Barca vem a público denunciar um grave caso de racismo ambiental promovido pelo governo do Estado do Pará e pela empresa Arapari no contexto das preparações para a COP30, evento mundial sobre o clima que acontecerá em Belém.
Nos últimos meses, a cidade tem passado por diversas obras de melhoria. No entanto, é notável que tais obras estão concentradas nas áreas mais ricas, dentro do polígono da COP, enquanto isso, questões periféricas como Vila da Barca seguem sendo negligenciadas.
Um exemplo claro seria a reforma da Doca de Souza Franco, localizada entre os bairros mais caros da cidade, onde está sendo construído um parque linear e realizada a revitalização do canal. Esse canal é um braço de rio que recebe investimentos enquanto, a poucos quilômetros dali, a Vila da Barca continua desassistida.
A Vila da Barca é uma das maiores comunidades de palafitas da América Latina, e há mais de 30 anos luta por melhorias e avanços no saneamento. No entanto, o que recebe como resposta do poder público é abandono, escassez, degradação. Para a COP-30, ao invés do investimento de infraestrutura,a comunidade foi transformada em um depósito de lama e dejetos.
O problema se agravou quando o terreno abandonado por anos por um grupo de transporte fluvial foi utilizado de forma irregular para demarcar sua ocupação. Colocaram três barcos a céu aberto, expostos a sol, a chuva, sem nenhuma preocupação com a proliferação de doenças, como a dengue. Em seguida, em um ato autoritário, decidiram fechar a rua em dois terrenos, prejudicando a mobilidade da comunidade.
No entanto, não contavam com a resistência dos moradores, que se mobilizaram contra a injustiça. Quando tudo parecia ter se acalmado, a situação piorou ainda mais. O terreno foi transformado em lixão e bora-fora da obra da Doca, recebendo toda a lama retirada do canal.
Esse material foi despejado na Vila da Barca, sem qualquer cuidado com os moradores, prejudicando a rua, levantando poeira no verão e gerando lama no inverno, criando condições insalubres de vida para a população local.
Como se não bastasse, o governo estadual adquiriu um casarão pertencente à mesma empresa e decidiu instalar uma estação de tratamento de esgoto para a Doca, sem qualquer consulta prévia à comunidade. O projeto não foi apresentado aos moradores, não houve explicação sobre os riscos e impactos ambientais e tampouco foram respondidos questões fundamentais: como essa área vai funcionar? Quais riscos a comunidade corre? O saneamento da rua da barca será contemplado ou continuará a ser ignorado?
Diante dessa situação de violência e direitos, a Barca Literária e a comunidade da Vila da Barca denunciam o racismo ambiental promovido pelo governo do estado do Pará e pela empresa Arapari.
Não aceitaremos ser tratados como o depósito de rejeitos enquanto investimentos são destinados apenas às áreas privilegiadas da cidade. Exigimos respeito, transparência e justiça ambiental para todos os moradores da Vila da Barca.”
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