Qual é a primeira imagem que vem à sua cabeça quando se fala em Estados Unidos da América? Para uma imensa maioria de pessoas, as imagens serão provavelmente a de um país que quase todos nós crescemos vendo em filmes, séries e notícias. Sejam os arranha-céus de Nova Iorque, as praias da California ou até mesmo as cidades poeirentas dos filmes de faroeste, existe uma América mítica, que Hollywood esculpiu ao longo de quase um século no imaginário mundial.
A força e a constância dessas imagens se devem, em parte, ao fato de que elas foram produzidas por um mesmo grupo de pessoas: criadores majoritariamente americanos, ou que vivem nos Estados Unidos, e que trabalham na mais poderosa indústria cinematográfica do mundo, com alcance global: Hollywood.
Mas qual é a Hollywood dos games? Por terem produção mais barata e descentralizadas, existem jogos produzidos por uma ou duas pessoas, apenas, e em várias partes do mundo. Embora os Estados Unidos e o Japão concentrem a maior parte da indústria chamada AAA (“triple A” em inglês, como são chamadas as superproduções em games), essa configuração já é mais descentralizada que Hollywood. Mas quando se observa a produção de games como um todo, incluindo os chamados “indies” (games independentes, normalmente de menor orçamento que os AAA) e experimentais, países como Canadá, Polônia, França, Suécia, Holanda, Alemanha, China, Reino Unido, Taiwan e Chile despontam como produtores de importantes games, que, se bobear, você já jogou.
Isso tudo faz com que games representem aquilo que, até então, enxergávamos quase sempre por uma única lente – a norte-amercana – a partir de múltiplas e novas perspectivas. Não é difícil, por exemplo, pensar num filme Hollywoodiano sobre alguém viajando pelos Estados Unidos pós-apocalíptico, certo? “Eu sou a Lenda” (2008), “Zombieland” (2009) e “Amor e monstros” (2020) são alguns exemplos. Todos envolvem um protagonista tendo que fazer uma jornada pelo país, devastado por alguma catástrofe.
Esse enredo é compartilhado por jogos como “Death Stranding” (2019). A diferença é que o game é japonês. E aí as coisas começam a ser pintadas com tintas um pouco diferentes. A “América” que Hideo Kojima cria em seu “Death Stranding” é uma despedaçada, que precisa se reconectar para voltar a existir. As pessoas têm o sobrenome das empresas para as quais trabalham e a própria existência do país depende de um serviço que nada mais é do que uma alegoria para o que fazem empresas como a Amazon. A única bebida que restaura a energia do personagem é uma publicidade de uma marca real. Os Estados Unidos do Pós-apocalipse de Kojima são quase uma caricatura extrema daquele que conhecemos hoje, com direito a referências por escrito a um presidente que “queria construir um muro ao longo da fronteira”, de acordo com um documento que pode ser lido no jogo.
Mecanicamente o jogo também beira o experimental ao enviar o jogador por caminhadas de vinte, trinta minutos em tempo real, tendo que equilibrar pacotes, distribuir peso ou se esconder de uma chuva que pode ser mortal. Além de cutscenes (sequências às quais o jogador apenas assiste, como vídeos) bem mais longas que o padrão, com informações e reflexões estéticas e filosóficas. Isso é especialmente importante, porque, especialmente nos últimos dez anos, representar os Estados Unidos de forma crítica ou sarcástica deixou de ser novidade, inclusive em Hollywood. Mas a maneira como essas representações são feitas, em termos de decupagem, escrita, lógica e mecânica, seguem um padrão tão reconhecível quanto a bandeira americana. Não é o caso de Death Stranding, que gera estranhamento até mesmo na forma como o personagem é controlado.
O elenco é liderado por Norman Reedus, americaníssimo. Mas complementado por atores dinamarqueses, franceses e mexicanos. A América de Death Stranding tem várias semelhanças com aquela do cinema, mas é também uma outra, que os vídeo games convidam a descobrir.
A partir daí, é possível pensar em vários outros jogos com detalhes não tão comuns sobre os Estados Unidos. A América de Cyberpunk 2077 (2020), também produto de ficção científica, traz clichês e detalhes que destoam um pouco daquela California que estamos acostumados a ver em Hollywood, mesmo que pós-apocalíptica. Todo mundo fuma, mesmo em lugares fechados, – coisa que foi banida até em “Blade Runner 2049” (2017) – as corporações que dominam o país, política e simbolicamente, são quase todas estrangeiras e a imensa maioria da população é empobrecida e mora em casas com jardins enfeitados por flamingos rosa de plástico – algo que provavelmente deliciaria John Waters, diretor do filme cult “Pink Flamingos” (1972). Na imaginação dos criadores do jogo, todos poloneses, os Estados Unidos estão fadados a se tornarem esse pastiche cafona de si mesmos, uma ideia não tão comum de se achar por aí.
E, mais do que apreciar esses detalhes, vale a pena ver o resultado deles em quem estava acostumado a ser representado sempre sobre uma mesma lente: os americanos. Alguns deles ficaram, no mínimo, surpresos com alguns detalhes de “Resident Evil 7: Biohazard” (2017), por exemplo. O jogo, feito no Japão, por criadores japoneses, se passa no sul do estado da Lousiana, região pantanosa dos Estados Unidos. Devido às constantes cheias dos pântanos da região, é impensável para qualquer morador da área que as casas tenham porões. Mas no jogo, eles não apenas existem, como são grandes o bastante para acomodar labirintos. E mesmo que o jogo se passe em 2017, a família Baker, proprietária da casa onde a história se desenrola, ainda usa tecnologias como fitas cassete e TVs de tubo. Um retrato impreciso, mas ao mesmo tempo provocador. Especialmente vindo do Japão, representado com bem menos cuidado e precisão pelos americanos.
Enxergar os games como uma oportunidade de construção de imagens mais diversas e plurais, ainda que sobre temas e assuntos já bastante explorados, é algo que nos ajuda a entender sua importância e, claro, parte do seu encanto. Ao mesmo tempo em que abre caminho para pensar em como eles também podem (e devem!) contar histórias e explorar cenários desconhecidos para a maioria do público ao redor do mundo.
*O artigo acima é de total responsabilidade do autor.
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