Eram habituais, na minha, as referências a uma antepassada perversa e malcriada que desdenhava de santos alheios, dava ordens sem parar e sem importar a quem e gostava de dizer, a cada um, as suas verdades. Tratava-se de uma criatura poderosa, um avantesma quase tribal, uma espécie de totem. Sabia-se dela, ainda, uns restos de história. Tratava-se da dona Chica.
Quando as nuvens se faziam negras no horizonte, havia sempre quem dissesse,
“São horas de dona Chica”,
E quando a bagarre se formava entre as gentes,
“São quizílias de dona Chica”,
E quando a disputa se dava ao jogo,
“É psica da dona Chica”,
E quando a desobediência se fazia,
“São questões p’ra dona Chica”,
E quando um mistério profundo se avolumava,
“São coisas de dona Chica”,
E quando o menino não queria dormir,
“Vou chamar a dona Chica”.
E isto era para mim.
Mas quando! Que logo fechava os olhos, credo!
Tecnicamente falando, ela era minha 6a avó, ou seja: a bisavó do meu avô. E tão poderosa era sua figura, em vida, que, morta, perdurou. E quando alguém perdura tanto tempo na memória das pessoas é sinal, penso, de que incomodou muito.
E perdurou dessa forma que lhe deu forma aquando viva: amedrontando menino, desgostando gente e destratando parente. Assombrando, que assombrar sempre foi sua especialidade…
Quando perdi o medo dela, fui buscar saber melhor quem era. Cá e ali fui colhendo sua forma humana. Chamava-se Francisca, é claro. Maria Francisca de Paula da Gama Lobo d’Anvers de Castro. Era filha do tenente-coronel João da Gama Lobo e de sua primeira esposa, a maranhense de São Luís, dona Joanna Paula Rubim d’Anvers, cabendo dizer que esse cidadão foi casado, pela segunda vez, com dona Anna Michaella Malcher de Révigélly, irmã do presidente cabano Clemente Malcher.
Dona Chica nasceu na sesmaria de seu pai, a Costa das Cuieiras, no atual município de Monte Alegre, no ano de 1778. Passou a infância em Santarém e, depois de casada, com o cametaense Agostinho Brandão de Castro Pestana de Vasconcellos, passou a residir em Belém. Primeiramente no Largo do Palácio, atual praça d. Pedro II, casa familiar dos Gama Lobo – em prédio hoje demolido que pertenceu, em seguida, a sua irmã e, depois desta, a seu sobrinho, José da Gama e Abreu, o barão de Marajó. Essa casa é uma das que dá hoje lugar à Assembleia Legislativa do Pará. Em seguida, dona Chica residiu em sua casa própria, no Largo do Carmo, Cidade Velha.
Do que soube, tinha um caráter voluntarioso, sabia ler e escrever – o que não era comum entre as mulheres de seu tempo, mesmo entre as mais ricas – e foi uma grande epistolária. Escrevia cartas e mais cartas, dando recomendações, conselhos e ordens. Mas também ensinando receitas de doce, falando de política e expressando suas percepções a respeito do comportamento alheio.
Consta de seu mito que se tratava de senhora mui zelosa do comportamento, seja o de sua gente, seja do alheio. Admoestava padres e bispos, capitães e generais, juízes de paz e juízes de fora. Falava aquém e não importa a quem. Dizia as verdades necessárias, sem importar se magoassem, ofendessem ou doessem. Era mulher de opiniões. De extremadas opiniões.
Suas cartas não restaram, mas o fato de se contar que foram muitas, me parece, constitui o indicativo de que houveram. Na verdade, sei o aconteceu com elas: foram parar dentro de um fogão, no forno-caldeira, lá jogadas pelas mãos insensíveis de Mirandolina Fernandes de Souza Castro, esposa de Antonino Emiliano de Souza Castro, o barão de Anajás, neto de dona Chica.
Há todo um conto por trás disso. Dona Mirandolina tinha implicâncias com a família do marido (deve ter sido maltrada pela avó do rapaz) e, quando pôde, pôs a perder as cartas tais. De pura maldade…
O barão, que foi um sujeito amante da história e guardador de lembranças da família, desde cedo colecionou as cartas da avó. As cartas escritas pela avó e, quando havia, também as cartas que esta recebia – as quais colheu aqui e ali. Saia solicitando-as aos parentes distantes e aos amigos, mendigando-as. Teria reunido uma boa coleção. Hoje, isso tudo seria um tesouro, a memória mais viva possível de dona Chica; mas bem, no contrapelo da história havia essa alma destrutiva que era a baronesa sua mulher. Um cão, um cão de botas – como se dizia.
Só não contava era que mais tarde viesse eu, que acredito que a sublevação da ficção atêia o passado e que estou aqui, rente que nem pão quente, para revelar não apenas o seu crime como, também, a existência de dona Chica.
Na verdade, venho reinventando as cartas de dona Chica, imaginando-as e reescrevendo-as. Meus compromissos graves são com a ficção-história, e não com a história-ficção. E nessa tarefa tenho-a consultado, a ela, dona Chica, sobre os assuntos de seu tempo e os do nosso.
Nem sempre ela se dá ao trabalho de me responder, pois não me considera boa coisa.
Com efeito, reprova, com veemência, meu gauchisme. Diz que sou intratável, irresponsável, pouco cristão, quase ignorante e que era melhor quando eu era menino e tinha medo dela.
A respeito de eu andar a reescrever as suas cartas, considera que bem fez aquele cão que era a Mirandolina, que as queimou e pronto. E que eu me exponho ao ridículo, sem qualquer necessidade, em fazer tal coisa.
Mas a nada disso levo muito em conta.
Apenas prossigo, adentro do tempo da memória – que não é apenas minha.
Comentários