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Chovia torrencialmente.  A minha rua e as demais viviam enlameadas devido a mistura da terra com a água.

Bem cedo, batia o vento frio da aurora e o sol, timidamente, começava a expor a cara pra esboçar seu leve sorriso dourado.

Mas o mês de março era e é o mês dela – da chuva. Aliás, o chamado inverno amazônico tem início, em geral, em dezembro e se estende até junho, meses de muita chuva!

Lançados os primeiros raios de sol, minha mãe me acordava pra ir à escola e meu pai saía pra comprar o pão, lá na padaria do Seu Joaquim, um português muito legal que sempre me dava pirulito e era amigo do papai.

Certa vez, papai me disse que o pai do Seu Joaquim veio de Lisboa em navio cargueiro no início do século XX e se instalou pra cá pro interior do Pará, e ficou aqui mesmo na cidade de Bragança.

Naqueles dias chuvosos, me dava uma preguiça danada de sair da cama! Mas tinha que me levantar e me preparar pra ir pra escola, antes que a mamãe gritasse comigo. Parece que estou ouvindo…:

– Luizinho, levanta meu filho. Vai logo escovar os dentes, tomar banho, te vestir pra tomar café e ir pra aula. Anda menino!

A tarde, todo dia, estudava as matérias da escola e depois fazia o dever de casa.

E assim, foi minha educação escolar. E hoje, no ano 2.000, agradeço a Deus, pois cheguei até aqui: sou juiz de direito de minha cidade-natal, Bragança!

Devido minha função judicante e dedicação às letras, tive uma rara oportunidade de ir à Belém, a Capital, a convite da Academia Paraense de Letras, no dia 22 de abril de 1967, data em que se comemora o descobrimento – que, na verdade, foi um achado – do Brasil, pois bem, lembro que fui a Belém para fazer palestra em homenagem a 1 (hum) ano da assinatura em Lisboa, que tinha sido em 7 de setembro de 1966, do Tratado de instituição da Comunidade Luso-brasileira. A assinatura do Tratado entre Brasil-Portugal foi a 7 de setembro para comemorar, por sua vez, a data da Independência do Brasil, ocorrida em 1822.

Graças ao estudo que fiz para construir aquela palestra, muito aprendi.

Está gravado em minha memória que no período das navegações marítimas portuguesas, nos séculos XV, XVI, com Bartolomeu Dias, Vasco da Gama e Pedro Álvares Cabral – os três portugueses que descobriram o mundo sob a bandeira lusitana- o império lusitano se espalhou pela África, Ásia, Oceania e América.

Na América, os portugueses encontraram o indígena, diferentemente das outras conquistas onde encontraram o negro, o oriental. Ao aportar, a frota Cabrália com seus menos de duas centenas de portugueses encontrou cinco milhões de nativos.

Na Amazônia, verdadeiro labirinto misterioso, o conquistador sentiu a necessidade de se aliar aos nativos, pois eram indispensáveis à própria sobrevivência: o silvícola era o guia da floresta; quem remava singrando os rios; era o pescador, o perito na caça e na coleta dos frutos silvestres, como as drogas do sertão – tais como, canela, pau-cravo, cacau nativo, borracha, baunilha, urucu; era aquele que apresentou ao colonizador a farinha, os utensílios de barro e de cipó, como tigelas, cabaças, esteiras, peneiras, tipitis; era o previsor do tempo; o sabedor dos remédios e dos venenos; o senhor insubstituível dos segredos dos rios e mistérios da floresta amazônica.

O nativo introduziu novos elementos na engenharia das casas para o conquistador, com giraus nas cozinhas, tetos de palha, fornos de barro, sem deixar de lembrar que o português também aprendeu um estilo de vida regional que foi tomar banho de igarapé e realizar trabalho comunitário em mutirões.

Lembro, também, que fiquei impressionado de quanto o Brasil é lusitano e quanto Portugal, ao longo da História, distinguiu nosso pais em relação às demais conquistas territoriais, no período de Colônia.

Os fatos que pesquisei bem exemplificam o que ora estou aqui a pensar!

A língua, a raça e o conhecimento científico são fatores culturais que naturalmente foram introduzidos tanto quanto foram nas demais colônias conquistadas. Mas aqui, na América, o português mostrou nítidos traços de preferência.

Ao longo da História colonial, em vários momentos, partes do território brasileiro foram invadidos por diversos povos e queridos serem tomados do conquistador português. Foram os franceses no Rio de Janeiro, no Maranhão e no Amapá; os holandeses, no Nordeste brasileiro; os espanhóis pretenderam aquinhoar territórios do Sul do Brasil, partes no Rio Grande do Sul, Paraná e Santa Catarina. Apesar de todas essas investidas, o Brasil restou sob o domínio da Coroa lusitana.

Conforme é bem observado por Otavio Mendonça, a partir do historiador português Jaime Cortesão (MENDONÇA, Otávio. Palavras no tempo. Grafisa:Belém, 1984, p.289-290), a preferência do reino português pelos trópicos tem como ponto máximo quando as tropas napoleônicas invadiram a Península Ibérica, ou melhor, quase todo o continente europeu, e somente a Coroa portuguesa se ausentou daquele continente, escolhendo, dentre os territórios mundialmente  conquistados pelo império português, vir para o Rio de Janeiro, em 1808.

E se D. João VI saiu da Europa tangido por Napoleão, a História mostra que as forças napoleônicas foram derrotadas e, em 1815, Napoleão foi exilado para a ilha de Santa Helena, e nem assim D. João VI retornou a Portugal, tendo sido compelido a regressar só em 1820, devido revolta no Porto, a Revolução Constitucionalista do Porto, que exigiu o retorno de D. João VI e a formação de uma Assembleia Constituinte.

A fraternidade luso-tropical atravessa os tempos chegando à era contemporânea. A palestra que fiz em 1967 em comemoração a um ano de assinatura do Tratado de cooperação técnica, científica e tecnológica entre Brasil e Portugal, e que instituiu a Comunidade Luso-brasileira, é a grande prova dessa irmandade. E hoje, lá se vão seis séculos de fraternidade.

Na Amazônia, a influência portuguesa é grande e se inicia pelo nome de batismo da cidade fundada pelo português Francisco Caldeira Castelo Branco, a 12 de janeiro de 1616, denominada Feliz Lusitânia, inicialmente Forte do Presépio, a hoje cidade de Belém.

No século XVIII, Sebastião José de Carvalho e Melo, conhecido como Marques de Pombal, tornou obrigatória a língua portuguesa na colônia brasileira. Fez-se, então, substituir a nomenclatura indígena dos povoados amazônicos por nomes lusitanos. Assim, Araticu passou a se chamar Oeiras; Arucurá, Portel; Aricaru, Malgaço; Paru, Almeirim; Curupatuba, Monte Alegre, Pauxis, Óbidos; Gebrié, Barcarena; Tapajós, Santarém (MENDONÇA, Otávio. Palavras no tempo. Grafisa: Belem, 1984, p.242)

Na organização judiciária da era colonial, os Ouvidores das Capitanias – os então juízes do Judiciário – dependiam do Tribunal de Relação da Bahia, criado em 1609 mas extinto em 1636, e os Ouvidores da Capitania do Maranhão e Pará ficaram subordinados aos Tribunais de Lisboa até 1662, quando voltou a ser subordinado ao recriado Tribunal de Ralação da Bahia. Todavia, em 1712, no Reinado de D. João V, retornou à dependência dos Tribunais lisboetas.

A criação do Estado do Maranhão, em 1621, teve por motivo o seguinte, lembro bem: com a chegada dos portugueses na Amazonia, no século XVII, o único acesso para a região era feito pelo delta do Rio Amazonas, e como havia dificuldade de contato com Salvador, de um lado, e, de outro, havia necessidade de combater os invasores, foi, então, criado o Estado do Maranhão, tendo São Luiz como Capital.

Nessa época, assim, o território conquistado na América ficou dividido em dois Estados: o Estado do Brasil e o Estado do Maranhão, que eram duas colônias diversas. Posteriormente, em 1654, ao Estado do Maranhão foi unida a Capitania do Grão-Pará, formando o Estado do Maranhão e Grão-Pará. Em 1737, a Capital foi transferida de São Luiz para Belém, e, na era Pombal, em 1751, a Capitania foi renomeada para Estado do Grão-Pará e Maranhão.

Devido a grande vinculação portuguesa ao Pará, não é à-toa que, apesar de a Independência brasileira ter sido a 7 de setembro de 1822, o Pará não aderiu ao rompimento dos laços maternos, vindo a faze-lo somente quase um ano após, a 15 de agosto de 1823, data comemorada até hoje em todo dia 15 de agosto, quando se festeja a Adesão do Pará à Independência – sendo feriado em nosso Estado do Pará. E em 2023, ou seja, daqui a vinte e três anos, serão os duzentos anos de Adesão!

Aliás, incomum, e talvez seja o único caso no mundo, que o rompimento com o país colonizador tenha sido promovido e efetivado pelo Príncipe herdeiro da Coroa colonizadora; ímpar este dado histórico: Pedro de Alcântara, com a proclamação da Independência brasileira feita por ele, se tornou Imperador D. Pedro I no novel pais, e, a partir de 1826, com a morte de seu pai D. João VI, em Portugal, tornou-se Rei chamado D. Pedro IV. Como muito bem pondera Otávio Mendonça (MENDONÇA, Otávio. Palavras no tempo. Grafisa: Belem, 1984, p.291): Pedro de Alcântara preferiu ser Imperador em um país selvagem recém-criado do que assumir o trono em um reinado europeu.

Na Amazônia, na época pombalina, é de se destacar um desenvolvimento local, como por exemplo, a referência a um jardim botânico dirigido por dois franceses – Michel Grenouiller e Jacques Sahut – jardim esse localizado na área onde hoje temos a Av. 16 de Novembro, a Praça Amazonas e o Polo Joalheiro, antigo Presidio São José.

Neste jardim botânico, há muito inexistente, foram plantadas espécies importadas de Caiena – fruta-pão, manga, abricó, pimenta, nós moscada e outras mais, sendo que a mangueira, originária da Índia, se tornou símbolo da cidade de Belém, por obra de resgate, um século depois, já no início do século XX, pelo Intendente Municipal de Belém, o maranhense Antônio José de Lemos, que governou a cidade de 1897 a 1911, tendo sido, em 1900, um dos sócios fundadores do Instituto Histórico e Geográfico do Pará.

Grandemente ganhou a região com a chegada de homens notáveis, também na era pombalina. É de se destacar que vieram homens de grande qualidade artística e verdadeiros estadistas como o desbravador Pedro Teixeira, o governador Mendonça Furtado, o artista italiano Antonio José Landi, dentre outros.

A forte influência lusitana no Pará é tamanha no DNA da cultura local que até hoje – 2000-  temos, como testemunhas, dois clubes genuinamente portugueses: um de desportos, a Tuna Luso-brasileira, e outro de cultura e lazer, o Grêmio Literário Português.

Pelo que é dado noticia dos historiadores nacionais, uma das causas da aclimatação lusitana ao tropicalismo verde-amarelo se deve ao fato de que a pouca terra que tem Portugal é árida, de solo pouco fértil, e o colonizador encontrou no Brasil vasta extensão de terra produtiva, com muitas riquezas vegetais, ao lado do minério e da beleza natural estonteante, não se podendo esquecer a facilitação da vida no novo mundo, com o afrouxamento do modo de ser e estilo de vida leve típico da brasilidade, em desprezo ao formalismo e padrões de vida européia.

Neste ínterim, bate à porta D. Filomena, a chefa da Secretaria do juízo de direito de Bragança, adentra no gabinete, e diz :

– Dr Luiz…., Dr Luiz…., Dr Luiz…..

– Diga D. Filomena !

– Por favor, Exa., pode vir para a sala de audiências que já está tudo pronto: fizemos o pregão, as partes já estão identificadas no termo de audiência, o promotor de justiça já se encontra, enfim, só falta o senhor pra começar a audiência. Lhe aguardamos, Dr.

D. Filomena saiu do gabinete do juiz e seguiu pra sala contigua, a de audiência.

Luiz, imerso em seus pensamentos, mergulhado em sua memória afetiva, nas profundezas de suas lembranças e recordações desde a infância, havia se esquecido da hora, passado a viajar no tempo. E teve que retornar à realidade.

Levantou-se de sua poltrona e seguiu para o ofício.

Antonio José de Mattos Neto
membro da Academia Paraense de Letras e seu ex-Presidente, da Associação Portuguesa de Escritores (APE, sede em Lisboa -PT), da União Mundial de Agraristas Universitários (UMAU, sede em Pisa-IT), da Academia Paraense de Letras Jurídicas e seu ex-Presidente, do Instituto Histórico e Geográfico do Pará e outros organismos nacionais e internacionais. Advogado, Doutor em Direito pela Universidade de São Paulo (USP). Professor Titular da Universidade Federal do Pará (UFPA) e Professor Titular da Universidade da Amazônia (UNAMA), professor da Fundação Escola Superior do Ministério Público do Estado do Pará, professor da Escola Superior da Magistratura do TJE-Pará, Procurador da Fazenda Nacional aposentado. Foi Vice-Diretor e Diretor Geral em duas gestões do Instituto de Ciências Jurídicas da UFPA. Coordena, organiza e participa de eventos acadêmicos nacionais e internacionais com palestras e conferencias. É membro de Conselho Editorial de periódicos científicos e Avaliador em periódicos científicos. É autor de livros, artigos científicos em periódicos, capítulos de livros e organiza livros de coletâneas. Tem experiência profissional na área de Direito, como Advogado, Parecerista e Consultor. É sócio do escritório - Mattos Sociedade de Advogados. Detentor de títulos honoríficos, medalhas e condecorações.

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