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Na parede da cozinha, uma arara de madeira pintada de azul e amarelo, manchada pelo vapor das panelas no fogão, observava silente tudo o que acontecia naquele lugar que mais parecia um oráculo, um portal para outra dimensão. Era a cozinha a casa de minha mãe. Esse lugar, grande suficientemente para os sonhos e pequeno para a quantidade de pessoas que insistiam em ficar ali, era um espaço para registrar memórias amorosamente afetivas.
Tudo era guiado pelo som. Do feijão ao café, do arroz ao pudim, tudo era antes de tudo identificado pela sonoridade do preparo do alimento. Minha mãe Nazaré, com a sabedoria de uma deusa e a paciência de Jó, observava atentamente o som da panela de feijão que não era preparado na panela de pressão mas numa firme e robusta panela de ferro com milhas e milhas acumuladas de domingos festivos. O peixe envolto numa camada mágica de trigo, dava impressão que eram flocos de algodão, tamanha a cuidadosa e meticulosa camada de trigo nele passada.
O leve estalado do óleo quente que normalmente o ouvido humano não capta (por isso achávamos que nossa mãe não era deste mundo), somente era interrompido quando a escumadeira depositava o peixe naquela preamar de óleo na frigideira, fazendo soar os ganzás da bateria de uma escola de samba na cozinha.
Ao final da bancada, espinafres, zahtar, pimenta síria, alhos, azeite, tahine, aguardavam o momento da sinfonia árabe dos pratos encantados. Quibes, babaganoush, tabules, homus faziam a mais espetacular dos sabores.
Minha mãe, atenta a tudo, ao mesmo tempo cozinhava, desenvolvia os assuntos com as pessoas, questionava, olhava o tempo para ver se ia chover e tirar a roupa do sol (quando criança eu achava que o sol se vestia e achava terrível desnudarem o coitado), e ainda administrava a Bolinha, uma cadela que falava com ela, e o Preto, um gato que considerávamos ser a ultima reencarnação de São Francisco dada a sua fleuma e sapiência (ou gatiência). Até a bênção do gato às vezes as crianças do bairro tomavam.
Ao servir a mesa, minha mãe não sentava. Preferia ficar observando quem comia e saber a opinião sobre a comida.
A reza era durante a comida, na forma amorosa e alegre da união entre a família mesmo aquele que minha mãe acabara de conhecer. No mesmo dia já se unia à mesa com todos como se dela fizesse parte.
E falava seu jargão clássico para todos que acabavam de se refastelar à mesa:

  • Poxa você não comeu nadinha!
    Após o almoço os contos e carícias nos olhares sonolentos faziam a introdução à sesta.
    Era nesse momento que minha mãe sentava, colocando seus pequenos pés em cima de uma velha lata de tinta com cimento dentro, para apoiar seus cansados e felizes pés. Era nesse momento que o azeite e o vinagre embebiam o alface e o pepino e o quibe cru era sorvido com invejável gosto. Ela adorava vinagre e dizia que o vinagre era como a lealdade. Nunca entendi essa analogia mas aceitei mesmo sem compreender.
    Ao final do festival de sabores e memórias, minha mãe areava as panelas, que voltavam ao gancho da cozinha com a sensação de dever cumprido.
    A arara de madeira continuava ali, silente a observar aquele lugar cheio de amor e mistérios.
Salomão Habib
Salomão Habib é violonista, compositor, concertista, palestrante, escritor, pesquisador, professor e contador de histórias. Membro da Academia Paraense de Letras, tem seis livros publicados. É o maior pesquisador da obra e vida de Tó Teixeira e tem 8 DVDs e 46 CDs gravados, um na Alemanha. Já se apresentou na Argentina, Portugal, Cuba, Venezuela, Bélgica, Suíça, Itália e Alemanha. É autor de mais de 450 peças musicais, idealizador e coordenador do projeto Cantarolar, reconhecido pelo Unicef.

Reflexões para o 19º aniversário de morte da Irmã Dorothy Mae Stang, NDdN.

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