Valdrada. As duas cidades gêmeas que nunca são iguais. Refletidas, nada acontece na primeira Valdrada que não acontece na segunda Valdrada. Não estou falando das minhas filhas gêmeas. Quem escreveu sobre Valdrada foi Italo Calvino que, em 1972, antecipou-se aos acontecimentos do século seguinte. Importa não só o que existe, mas o que é refletido a partir do que existe. Tipo um mundo espelhado. Ítalo escreve que às vezes o espelho aumenta o valor das coisas, às vezes anula. Ítalo também escreve que os habitantes de Valdrada tem consciência de que seus atos consistem neles próprios e na imagem espelhada deles. Real e virtual. São duas cidades. Duas vidas. Mas, reflexos de um espelho: não se tocam. E não se amam.
Quando eu li Cidades Invisíveis e conheci Valdrada e as outras cinquenta e quatro cidades narradas por Marco Polo a Kublai Khan, eu já era arquiteta. Mas não sabia o que eram as cidades. Achava que arquitetura é o abrigo e que cidade é um aglomerado urbano de espaços e pessoas, mas Ítalo Calvino me ensinou que cidade não é só um conceito geográfico. É um produto da experiência humana. E se as cidades são complexas é porque as pessoas são complexas. As cidades somos nós. E nós estamos mudando (oi, metaverso).
Mas mudar tem a ver com o tempo. E para quase tudo, a pergunta não é como, mas quando. A série alemã Dark, da Netflix, não abordou arquitetura e nem cidades, mas ilustra como o tempo concentra todas as respostas. E, ainda que o enredo envolva viagens temporais cíclicas, a série lembra que mesmo nós, jamais seremos os mesmos. O que somos então depende de quando estamos. Então, o que é arquitetura? E o que é cidade? O caminho longo para as respostas passa por uma perspectiva histórica, estética e politica. O caminho curto? Envolve a mesma ideia por traz do questionamento sobre quando um objeto adquire valor cultural, e isso quer dizer que, o que é arquitetura, o que é valor cultural, o que é arte – são definições institucionais, tem a ver com um consenso geral de uma comunidade. Uma tendência do mundo que estamos vivendo. Zeitgeist que fala né? Lembro quando, grávida, escolhi o nome das minhas filhas e comentei a uma amiga. Ela disse que o nome da Alice estava na moda e falou “é o Zeitgeist”. Eu fiquei p* da vida. Como assim, escolhi o nome por isso-e-aquilo e não por que está na moda. Minha Alice fez um ano e no parquinho que ela brinca com a irmã gêmea, todo dia tem muitas Alices. As escolhas sempre tangem a comunidade. Senta e chora, Luciana.
A verdade é que demoramos a aceitar que não somos tão individuais assim. Ok, somos todos únicos e especiais e eu detesto a ideia de arquétipos. Mas nossas escolhas, nossas definições, nossos conceitos, convergem para um sentido compartilhado. E arquitetura, cidade, arte e cultura tem um denominador comum, são símbolos. E símbolos, como sabemos, mudam. A cor azul, por exemplo, hoje é considerada por uma parcela significativa da população como uma cor masculina e a cor rosa relacionada ao universo feminino. Mas, ambas simbolizavam há um século atrás o oposto. Até a Primeira Guerra Mundial, as crianças utilizavam predominantemente a cor branca, cujo tecido era mais fácil e barato de se obter. O azul era considerado uma cor delicada e passa a ser frequente para as meninas e o rosa era considerado mais energético e próximo ao vermelho, por isso era indicado para os meninos.
Parece que estou falando de novo de Valdrada. Um mundo igual, mas espelhado. Idêntico e o oposto. Seriam duas Valdradas, uma real e outra espelhada ou seria passado e futuro? Como uma construção se torna arquitetura, como um assentamento urbano se torna cidade, como um objeto se torna patrimônio, como uma obra se torna arte? A pergunta não é como, mas quando. No passado, no presente ou no futuro? A ideia da arquitetura como a cabana primitiva e abrigo espacial mudou. As cidades como conhecemos também podem mudar. As pessoas acham que as cidades se originaram das aldeias e a partir do estabelecimento fixo das sociedades neolíticas com o desenvolvimento da agricultura. Mas as cidades nascem da organização (e contraste) entre grupos sociais. Os que produzem, os que comercializam, os que governam. Não é na arquitetura que se concentra a essência das cidades, ela mora nas relações que existem entre as pessoas e o espaço arquitetônico e urbano. Se tudo muda, a conexão entre as pessoas e coisas permanece. E se existem mesmo duas Valdradas, uma real e outra virtual, tomara então que elas consigam ser como minhas filhas gêmeas. Agora sim vou falar delas. Iguais e diferentes, se tocam, convivem em uma eterna simbiose, desde sua origem compartilhada. E se amam.
Se o ano só começa depois do Carnaval, olás. Voltei.
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