Publicado em: 21 de junho de 2024
Não sei se conhecem a história de Pedro Sem. O nome diz já muito, mas deixem estar. Conto-a logo mais. Antes, preciso dizer que a soberba desmente. Tal como o orgulho desdigniza. Tal como a vaidade empobrece… E tudo isso tem a ver com a história de Pedro Sem e com muitas outras.
Sou treinado (pelas artes da filosofia fenomenológica heideggeriana, culpa de Benedito Nunes e de Michel Maffesoli) para perceber o não-ser – sobretudo em quem pretende, justamente, ser. E não o digo com uma perspectiva psicológica, mas sociológica… E isso me faz lembrar uma frase de Millôr Fernandes: “A humildade é uma espécie de orgulho que aposta no perdedor”.
Pois é. Lembrei de Millôr porque também lembrei de um caso que foi bastante comentado, nos subúrbios de Belém, no ano de 1962, e que foi registrado, na memória local, como “o conto da Patolina”.
Mas também não vou falar disso agora.
Antes, prefiro retornar à história de Pedro Sem. Depois de depois eu falo sobre “o conto da Patolina”.
Não sabem, mesmo, quem foi Pedro Sem?
Pois ele foi um riquíssimo comerciante da cidade do Porto, no tempo das grandes navegações, lá pelo século XVI. Era muito rico, avaro e pretensioso. Emprestava dinheiro a juros altíssimos e, além disso, financiava muitas viagens às Índias e às Áfricas, trazendo especiarias que comercializava por toda a Europa.
Pois bem… Certa vez Pedro Sem investiu a maior parte da sua fortuna numa imensa expedição, e aguardou seu retorno com impaciência, com receio de que algo pudesse acontecer – vocês sabem, tempestades, saqueadores, armadas inimigas, monstros marinhos…
Por fim, do alto de uma torre, avistou a sua frota no horizonte, regressando intacta das Índias. O céu estava límpido e nada mais poderia acontecer. E, então, Pedro Sem começou a festejar e a baflemar:
“Agora, nem que Deus queira, vou ser um homem pobre!”
Só que (os “só que!” da história…) repentinamente uma tempestade terrível se formou no horizonte e Pedro Sem viu toda a sua frota naufragar. Pedro Sem perdeu suas mercadorias, se encheu de dívidas, espalhafou sua riqueza e ficou na miséria. Pedro Sem ficou sem nada.
E, pelas ruas do Porto, terminou sua vida mendigando e dizendo assim,
“Dai uma esmola a Pedro Sem, que tinha tudo e agora nada tem!”
Pois é, não vos disse que a soberba desmente?
E, pensando nesse ocorrido e na moral da história, recordo da receita mais bem receitada para tais males – os males da soberba, da empáfia e da vaidade vã: a receita de “Caldo para vapores e flatos que sobem à cabeça”.
Essa preciosidade é uma das receitas que compõem o primeiro grande clássico da gastronomia brasileira, o livro “Cozinheiro Imperial, ou Nova arte do cozinheiro e do copeiro”. A versão que tenho dele é a de Laemmert & Co., Rio de Janeiro, 1887. Mas sua primeira edição data de 1839, também tendo vindo ao mundo no Rio de Janeiro, pela mesma casa editora. A minha é a décima edição desse livro precioso, e, por esse indicativo, podem avaliar a importância do “Cozinheiro Imperial” nas mesas brasileiras.
Mas vamos à referida receita, que se encontra na página n° 37 da edição que possuo:
“Caldo para vapores e flatos que sobem à cabeça”
“Tomem as folhas de malva, de betônica, mercurial, atermija, althéa e azedas; uma mão cheia de cada uma; lavem todas muito bem; esbruguem-se, cortem-se miudas e ponhão-se a ferver em uma canada de agua: em tendo fervido, e a água reduzida à metade, coe-se pela peneira, divida-se em duas partes e tome-se uma pela manhã em jejum e outra à noite. Na porção que se tomar pela manhã, deitem-se seis grãos de cástor em pó, use-se deste caldo por tempo de quinze dias, purgando-se no principio delle, no meio e no fim”.
E aí vos pergunto: será que funciona?
Tem um sujeito que conheço desde que ele era pequeno, coisa de uns seis anos mais novo que eu, que me parece o supra-sumo, em Belém, dos males da soberba, da empáfia e da vaidade vã. Evidentemente que não vou sugerir quem seja, nem viria ao caso. Vez por outra cruzo com ele. E de vez em quando me vem, à mente, a ideia de convidá-lo para vir em casa tomar esse caldo – o qual nunca preparei.
Mas não andemos a perder tempo com isso. Falemos, antes de Laemmert e Co., a mítica e histórica editora do Rio de Janeiro, a casa editorial que lançou as treze edições do “Cozinheiro Imperial”. Ela situava-se no n° 66 da Rua do Ouvidor. Foi inaugurada em 1838 – um ano antes do lançamento do “Cozinheiro”, seu primeiro grande sucesso de vendas – pelos irmãos Eduardo e Henrique Laemmert, nascidos no Grão-Ducado de Baden, em 1806.
Essa casa de edição publicou várias preciosidades da cultura brasileira, como “A Lyra Moderna ou Collecção de Doze Modinhas Brasileiras escolhidas e D’hum grande Lundum para piano-forte” e as muitas edições anuais do Almanak Laemmert – publicado ano após ano até 1930. Em 1862 o próprio imperador Pedro II visitou a Casa Laemmert e Eduardo foi eleito sócio do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Sobre o “Cozinheiro Imperial”, resta dizer que a obra foi escrita pelo visconde de Vilarinho de São Romão, português que viveu no Rio de Janeiro. Sobre o “conto da Patolina”, deixem estar, que qualquer dia conto essa história a vocês (seria muita história de soberba para uma crônica apenas). Sobre o “Caldo para vapores e flatos que sobem à cabeça” et sur les vanités de ce monde, ficam as lições de Pedro Sem. A aproveitar ao juízo de quem o tenha, no compromisso de oferecê-lo a quem lhe falta.
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