I want to play a game. Ele começa assim…
Dia 01. A arte é um jogo.
Muita gente diz que não gosta de arte contemporânea. No que pese as barreiras que realmente existem, eu me lembro da sensação indescritível que eu senti quando pisei no Inhotim. Era 2017, a gente era feliz e não sabia e eu entrei na galeria do Cildo Meireles. Desvio para o vermelho é uma obra projetada em 1967 que, depois de ser montada no MAM do RJ, passou a ser exibida de maneira permanente no Inhotim a partir de 2006. Cildo queria fazer uma analogia com o efeito Doppler, aquele fenômeno físico famoso que a gente aprendeu na escola mas que pra mim ficou marcado por um filme que fala de viagem no tempo. Pois bem, quando dois corpos se afastam, diminui a frequência de onda eletromagnética. Quanto mais rápido esse deslocamento se dá, maior é o desvio para o vermelho. Cildo e sua obra são ambiciosos, simbólicos e sinestésicos. Cildo queria mostrar a cor saturada se transformando em matéria. O que ele faz é proporcionar uma sequência espacial de impactos psicológicos no espectador e ninguém pode dizer que sai de lá sem ter sentido algo.
O primeiro dos ambientes é chamado de Impregnação, com todos os diversos objetos vermelhos. No segundo ambiente – Entorno – a gente sente de imediato o contraste da saturação monocromática, que assume o ápice em Desvio. Este terceiro espaço nos revela o poder dos sentidos ao ouvirmos somente o som da água intensamente vermelha jorrando de uma pia. Só que as memórias são individuais e nos pregam boas peças. Lembra do filme e da viagem no tempo? Era efeito borboleta e não doppler. Mas o vermelho da obra do Cildo, esse é coletivo.
Dia 02. O pouco é muito.
Aqui tem pouco vermelho, só que o pouco representa muito. Na Casa Schröder, explico o vermelho: cor primária, símbolo da representatividade objetiva da vida moderna para Piet Mondrian. Ele, que em 1909 começou a pintar coisas abstratas e contribuiu com o movimento De Stijl, uma coisa incrível que juntava arte, arquitetura e design e fez com que eu e minha amiga Renata nos apaixonássemos ainda mais pela história da arquitetura quando a gente estudava lá no atelier da FAU (UFPA) em Belém, sub 2010. A vida não deveria ser complicada demais, embora seja. Mas não na Casa Schröder, onde sua singularidade convive com a simplificação de conceitos e ideias, equilibrados em um espaço visual composto por linhas retas e planos retangulares, assim como o quadro famoso de Mondrian. Nela tudo é simples, reversível, independente, móvel, flexível e não hierárquico. Ela representa na íntegra o movimento De Stijl, o fim do individualismo e a potencialidade transformadora da arte para a arquitetura. A Casa Schröder, construída em 1925, em Ultrecht, nos Países Baixos (pra gente é a Holanda) pelo arquiteto Gerrit Rietveld, é a representação perfeita de um ideal. E o vermelho é a representação imperfeita da vida que merece ser vivida no Brasil.
Dia 03. Parece, mas não é.
Quando eu passei a gostar de arte contemporânea, conheci o Tunga e a obra True Rouge, lá no Inhotim. Eu sei que já disse que o ano era 2017, mas volto nele porque acho que, a partir daquele dia no Inhotim, tudo mudou pra mim. Eu tinha começado a trabalhar no Iphan (e amava!) e, depois disso, foram duas mudanças pra dois Estados diferentes, um doutorado, uma pós, uma gestação e duas filhas. E tudo foi se desenrolando depois daquele dia de 2017 no Inhotim e depois do Tunga. Se alguém disser que não é arquitetura, eu rebato: True Rouge só existe se tiver um teto. Então há abrigo. Então é arquitetura. E tem mais, Tunga era arquiteto. Também era artista e via a arte como uma manifestação multidisciplinar, onde a filosofia, literatura e psicanálise estavam sempre ali, juntinhas. A instalação True Rouge existe desde 1997 e está desde 2002 no Inhotim, sendo composta por recipientes (des)pretensiosamente amontoados que parecem uns vidros de laboratório, mas não são, e que parece sangue, mas não é, e que parecem em movimento, mas são estáticos. Uma escultura sujeita a interpretações e manipulações, onde os protagonistas somos nós, mas não só. A cor vermelha assume sua supremacia – única e insubstituível. O vermelho de Tunga tem como pretensão invadir o espaço, algo místico se espalhando como alquimia, se transformando e nunca morrendo. Ele não morre, ele se transforma. Sem o vermelho não há obra e sem o vermelho, para nós, não há esperança.
Dia 04. Meu coração é vermelho.
Quis eu fazer uma tetratologia do vermelho nesses dias tão emblemáticos. Talvez seja porque recentemente li a Tetratologia Napolitana da Elena Ferrante. Ou porque tenho pensado com mais clareza sobre o que eu quero fazer da minha vida. Eu sei que é clichê falar isso beirando os trinta e quatro e depois de uma pandemia, meio doutorado, um puerpério e filhas gêmeas, mas eu não consigo deixar de pensar no país que vai ficar para as minhas filhas. A maternidade faz muitas coisas, mas a principal delas é deixar a gente forte para lutar pelos nossos. E quando eu penso em força, coragem e tudo que eu queria ser, eu penso na Lina Bo Bardi e no MASP. Lina veio da Itália pro Brasil e se tornou aqui a arquiteta mais foda de todos os tempos. Lina criava arquitetura e arte, respeitava profundamente nosso patrimônio cultural e ainda fundou uma revista incrível, a Habitat. O edifício do MASP que ela projetou já era vermelho, mas quando foi concluído em 1968, estava sem o vermelho dos pilares, que só vieram a ser pintados na década de 1990. A verdade é que ninguém que está vivo e conhece o MASP desde a década de 1970, pensa nele todo de concreto. Ele é vermelho, sempre foi. Imagina, coisa estranha, o MASP cinza. Não. Ele é vermelho e tem o coração de todos os apaixonados por arquitetura e arte.
O MASP inovou com o maior vão livre até então construído, 74 metros de largura de um pilar a outro, configurando uma praça popular bem no meio da Avenida Paulista, a mesma onde hoje ocorrem as principais manifestações democráticas no nosso país. Lina também inovou no MASP ao romper com a ideia fixa de que as obras deveriam ser expostas em paredes. Ela criou os cavaletes de cristais e revolucionou a museografia. Lina deu a nós não só uma arquitetura inovadora e um interior revolucionário, onde a gente escolhe que percurso fazer: ela também nos deu o maior ponto de encontro da democracia brasileira no coração da Paulista. Lina lutou muito pela democracia no país dela e encontrou abrigo no nosso nos dando em troca o melhor da nossa arquitetura brasileira. Lina virou nossa. O MASP é nosso. E a gente vai dar a ela, onde quer que ela esteja, o orgulho de ver nossa democracia e nosso país com vida e esperança.
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Quatro crônicas juntas em uma só. Quatro obras em quatro dias antes de trinta de outubro de 2022. Porque a arte pode ter o formato que a gente quiser. Só temos que lembrar que a forma da mensagem, o ethos, importa. A arte importa. E é pública. Um jogo. A gente só precisa conhecer as regras pra começar a jogar.
Que comecem os jogos.
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