Se você joga video games, em algum momento da vida já deve ter ouvido alguém te dizer para largar os jogos e ir “ler um livro”, ou coisa parecida, certo? Talvez você já até tenha dito algo semelhante a alguém, especialmente se tiver filhas ou filhos. Claro, ler é sempre bom e, como qualquer atividade cultural, merece o incentivo. Assim como ir ao cinema, a museus, praticar atividade física, ver televisão ou frequentar shows. Porém, mais do que isso, essa frase ressalta um ponto muito específico: ela pressupõe que ler é mais valioso ou mais importante do que jogar. E é aí que mora a armadilha.
Lá em 2005, Steven Johnson, pesquisador e escritor sobre teoria das mídias, já falava sobre isso em “Surpreendente! – A televisão e o videogame nos tornam mais inteligentes”, publicado inclusive no Brasil (Editora Campus). O livro mostra como as séries de televisão atuais – ou nem tão atuais assim, considerando que foi escrito há mais de 15 anos – e os games nos preparam para lidar com narrativas complexas, linhas temporais múltiplas, tramas alineares e muito mais. Portanto, a ideia de que estas mídias seriam “menores” ou “piores” do que a literatura, por exemplo, teria mais a ver com preconceito do que com fatos.
E alguns jogos recentes são quase uma prova dessa teoria. Escritos com cuidado, técnica e linguagem claramente literários, acabam sendo uma leitura tão boa quanto, ou até melhor, do que aquela que seria feita em um livro. Disco Elysium (2019) é o primeiro exemplo e não por acaso. A arte lembra aquela dos livros chamados de “Pulp”, bastante comuns nos Estados Unidos. A trama poderia ser um livro de Raymond Chandler, seguindo os ritos e formas tradicionais de uma história de detetive – e subvertendo-os de maneira raramente vista, inclusive na literatura. Por fim, o texto é rico em figuras de linguagem, exercícios poéticos, paralelos políticos, sociais, econômicos e culturais. Disco Elysium poderia ser um grande livro. Mas decidiu ser ainda mais do que isso.
E não é por acaso. O diretor do game (e também seu principal escritor), Robert Kurvitz, publicou um romance em 2013: “Püha ja õudne lõhn” ou “Sagrado e Terrível Ar”, em tradução livre do estoniano, sua língua nativa. Sempre interessado em jogos, – Kurvitz mantém até hoje uma campanha de RPG com amigos, transcorrida no mesmo universo de seu romance e de Disco Elysium – o escritor decidiu que um vídeo game seria o melhor suporte para sua obra, acrescentando-lhe interatividade e volume. Nascia Disco Elysium.
E não deve ter sido um parto fácil. Por exemplo, o game mistura línguas e inventa E não deve ter sido um parto fácil. Por exemplo, o game mistura línguas e inventa palavras, com termos vindos do inglês, russo, alemão, francês, espanhol, português, estoniano, finlandês. Tudo para tornar o universo do jogo ainda mais orgânico e vivo, além de se assemelhar a técnicas de escrita de gente como Guimarães Rosa e James Joyce.
Além disso, o jogo foi anunciado pelo próprio estúdio como tendo “um milhão de palavras”. E mesmo que jogando você não vá ler todas elas, já dá para ter uma ideia de que não são simples e diretas linhas de diálogo. Confira alguns exemplos do texto jogo, em tradução livre:
“Esta é a escuridão real. Não é a morte, ou a Guerra ou abuso sexual infantil. A escuridão real tem o amor como rosto. A primeira morte é a do coração, Harry.”
“- Sobre o que é a literatura oranjesa?
– Medo de errar, medo da morte. O quanto é uma porcaria ser oranjês. Todas as literaturas nacionais são sobre isso – só muda o nome da nação”.
Em sua versão final (“Disco Elysium – Final Cut”) todas as falas do jogo são interpretadas por atores, injetando ainda mais vida na narrativa e tornando o jogo uma experiência necessária a qualquer amante de literatura – e cinema, teatro e, claro, games.
Mas mesmo quando o jogo não é tão “literalmente literário”, é sempre possível encontrar literatura pelo meio dos pixels. Eu me lembro que conheci vários clássicos da literatura não-brasileira graças a um game “point and click” chamado “The Pagemaster” (1994). Podendo interagir com personagens e até ler trechos de obras de Robert Louis Stevenson, Mary Shelley e Hans Christian Anderesen, acabei procurando e lendo os livros na íntegra, uma grande diversão na época.
E há também jogos nos quais a história, ainda que não contada em linguagem literária, utiliza de técnicas dessa arte. “What remains of Edith Finch” (2017) permite que a jogadora ou jogador experiencie o mundo “na pele” de diversos personagens. Uma experiência fascinante e original, que se assemelha bastante ao “fluxo de consciência”, usado por escritores como Clarice Lispector. Tanto nos livros como no jogo, o que acontece é menos importante do que o que aqueles personagens sentem, pensam, interpretam. E é por isso que ter a oportunidade de estar “na cabeça” deles é mais importante do que observar suas ações. E embora a literatura já experimente com isso há séculos, um game há também jogos nos quais a história, ainda que não contada em linguagem literária, utiliza de técnicas dessa arte. “What remains of Edith Finch” (2017) permite que a jogadora ou jogador experiencie o mundo “na pele” de diversos personagens. Uma experiência fascinante e original, que se assemelha bastante ao “fluxo de consciência”, usado por escritores como Clarice Lispector. Tanto nos livros como no jogo, o que acontece é menos importante do que o que aqueles personagens sentem, pensam, interpretam. E é por isso que ter a oportunidade de estar “na cabeça” deles é mais importante do que observar suas ações. E embora a literatura já experimente com isso há séculos, um game permite fazê-lo de uma forma ainda mais imersiva e, no caso de “Edith Finch”, emocionante.
Por fim, até jogos extremamente populares e conhecidos acabam tendo um pezinho na biblioteca. “Witcher 3 – The Wild Hunt”, não apenas é adaptado dos livros escritos por Andrzej Sapkowski, como contém passagens extremamente bem escritas. Enquanto a estrutura do jogo faz com que suas escolham tenham impactos diferentes sobre o mundo ao seu redor, – algo que, como a maioria dos games, faz lembrar Julio Cortázar – a escrita dos diálogos (trabalho excelente liderado por Marcin Blacha) não tem medo de usar linguagem cinematográfica ou dramática, além de referenciar diversos outros livros – até “Crepúsculo” aparece no jogo.
Assim, é comum ouvir personagens dizendo coisas como (traduções livres) “a vida pode ser toda em preto e branco pra vocês, Witchers, mas para nós, pessoas comuns, é tudo em tons de cinza”. Ou, num momento-chave e altamente emocionante da trama, uma personagem diz ao pai, que tenta impedi-la de arriscar-se: “essa é a minha história, não a sua. Você tem que me deixar terminar de conta-la”. Um momento metalinguístico e de ironia romântica, comum, por exemplo, em romances de Machado de Assis, quando o personagem se dirige ao leitor.
A lista ainda poderia ir longe mas, valha o trocadilho, a intenção aqui não é escrever um livro. É, isso sim, mostrar como games e literatura podem ter muito mais em comum do que um primeiro olhar – ou um olhar ultrapassado – possa enxergar. E que embora jogos jamais possam substituir romances (e vice-versa!), me parece claro que os dois, juntos, podem ampliar nossa imaginação, raciocínio e capacidade de compreensão e apreciação da realidade de forma única. Isabel Allende disse que “a biblioteca é habitada por espíritos que saem das páginas durante a noite”. Talvez seja porque eles tirem esse tempo para passear pelas telas e bytes de um game qualquer…
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