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Estamos acostumados a encarar jogos como produtos. É algo lógico, já que games são criados para serem reproduzidos e vendidos ao máximo. O próprio fato de que se trata de uma mídia 100% digital já nos leva a pensar os jogos como algo que compramos numa loja, física ou digital, por um determinado preço. Embora essa premissa seja correta na maioria dos casos, vira e mexe aparece um game ou uma situação que nos coloca pra (re)pensá-la… É quando os games deixam aparecer sua carinha de “artefato cultural”, ou seja, algo produzido por e para uma cultura e que, como tal, carrega características únicas. Pense em como as pinturas rupestres nos permitiram entender os hábitos e a organização do homem paleolítico, por exemplo. Ou o que representa o pijama que Getúlio Vargas usava quando “saiu da vida para entrar na história”, hoje exposto no Museu da República, no Rio de Janeiro.

Esses objetos possuem uma condição “única” no tempo e no espaço. Uma “aura”, se quisermos pensar em Walter Benjamin. E por isso assumem esse status de “artefato cultural”. Mais do que para aquilo que foram criados, servem para nos contar algo sobre nossa sociedade ou cultura.

E isso também ocorre com alguns games, ou partes deles. Jogos e situações que, por algum motivo, hoje representam algo mais do que “um produto”. E, cá entre nós, um dos motivos pelos quais eu amo “os joguinhos”.

Você se lembra, por exemplo, do “Missingno”?

Missingno visto em “Pokémon blue/red” (1998)

Causado por um “glitch” de programação (algo semelhante a um erro de código), esse Pokémon se tornou objeto de especulação de toda uma geração. Até hoje, há quem jure de pé junto que o “Missingno” (na verdade, abreviação de “Missing Number”, ou “número faltante”) se trata de um Pokémon secreto ou que ainda seria revelado. Mesmo que a Nintendo já tenha se posicionado oficialmente, dizendo que a ocorrência se trata de um problema e não de “uma parte real do jogo”.

Mais do que isso: matérias em revistas especializadas e na internet ensinavam o passo a passo para encontrar o “monstro”. Mesmo sob risco de, talvez, perder o jogo salvo, muita gente executou esse ritual.

Resultado: até hoje, em escolas de desenvolvimento de games, esse “glitch” é estudado e analisado. Construir bases de dados que funcionem corretamente e observar bem as interdenpendências de código do jogo é essencial para não gerar novos “Missignnos”. Mas será que teríamos aprendido isso sem ele? Provavelmente não. E o status de lenda urbana permanece…

Por falar em lenda urbana, lembra de “P.T.” (2014), o teaser jogável desenvolvido por Hideo Kojima para anunciar “Silent Hills” – um game que nunca foi lançado? Além de ser uma das experiências de terror mais bem realizadas na história dos games, o jogo estaria fadado a se tornar um mais um artefato cultural. Devido a um desentendimento entre Kojima (criador do jogo) e a Konami (empresa proprietária da franquia “Silent Hill”), o jogo foi apagado de todas as plataformas digitais e nunca teve um lançamento físico. Resultado: apesar de muito comentado, e inclusive inspirar games até hoje, “P.T.” só pode ser jogado em consoles que tenham mantido o jogo em sua memória física. Algo que, inclusive, tem justificado a venda de consoles antigos por preços mais caros do que o novo Playstation 5. Também por causa dele, se discute bastante sobre o quão seguro seria comprar games digitais (em comparação à mídia física) e até sobre o poder das distribuidoras sobre os conteúdos.

“P.T.” (2014): até o software do jogo se tornou algo meio fantasmagórico…

E se esse assunto chama a sua atenção, nesse exato momento há um jogo que você pode jogar e que provavelmente se tornará, logo mais, um novo artefato para essa lista. Trata-se do novo “doodle” (aqueles logos interativos) do Google. Inspirado pelos jogos olímpicos e desenvolvido em parceria com o estúdio japonês de animação “STUDIO4°C”.   “Doodle Champion Island Game” (2021) é um “RPG completo”, que pode ser jogado no seu navegador. Sem tempo para jogar tudo agora? Apenas pare e volte depois: seu jogo estará salvo – uma bruxaria que provavelmente envolve cookies e uso “permissivo” de dados. Há inclusive um quadro de pontos atualizado em tempo real, já que, ao começar o jogo, você deve escolher um dos quatro times para fazer parte.

A “praça principal” de “Doodle Champion Island Game” (2021)

Além de carismático e provavelmente ter roubado pelo menos alguns minutos de quem trabalha em um computador ao redor de todo o mundo, essa é a primeira vez que um jogo de navegador, sem necessidade sequer de instalação, atinge tamanha complexidade. Enquanto o design do jogo se assemelha aos primeiros títulos de Zelda ou “Chrono Trigger”(1995), por exemplo, as “cutscenes” (“filminhos” exibidos durante o jogo) trazem animações 2D de extrema qualidade e no estilo único japonês. É algo divertido e casual, mas que oferece desafios moderados em gêneros como plataforma, puzzle e até corrida.

O “doodle”, feito em bit art, como o restante do jogo

Para muita gente que talvez nunca tenha se aventurado a jogar um game de RPG, a possibilidade de experimentar um apenas clicando no navegador durante o trabalho muda completamente a forma como as pessoas se relacionam com esse tipo de jogo. Assim como as olimpíadas nos aproximam de diversos esportes pela “primeira vez na vida”, graças a esse “doodle” muita gente vai passar a ver games de uma maneira nova após as poucas semanas em que ele estiver na página principal. Além de talvez checar com colegas e amigos como o time deles está indo, quem está na frente. Como bom artefato cultural, talvez se torne lembrança de uma olimpíada no Japão, sem público, mas vivida de forma diferente pelo mundo todo. Inclusive, por meio de um game.

*O artigo acima é de total responsabilidade do autor.

Dimas de Lorena Filho
É jornalista com mais de 10 anos de experiência em comunicação corporativa em empresas como Experian, Monsanto e Bayer. Largou da chupeta por causa do videogame. E fez mestrado só pra poder estudar "joguinho". Atualmente, estuda Game Design na Universidade de Ciências Aplicadas de Colônia, na Alemanha.

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