Publicado em: 17 de abril de 2025
Para o povo Mẽbêngôkre Xikrin, realizar um evento cultural fora de seu território tradicional no Dia dos Povos Indígenas vai muito além de uma pontual celebração: é um gesto político de visibilidade. Mesmo longe da Terra Indígena Trincheira Bacajá, onde vivem, os Xikrin entendem que Altamira também guarda marcas de seu passado ancestral.
No próximo sábado, 19 de abril, a cidade sediará um evento protagonizado pela etnia, promovido pela Associação Indígena Berê Xikrin. Uma programação especial que une arte, esporte, tradição e resistência indígena, com início às 9h no Teatro Municipal Jarbas Passarinho, será dedicada à valorização da cultura ancestral, ao incentivo ao esporte tradicional e contemporâneo, e à visibilidade das expressões culturais e políticas indígenas.
“Mesmo estando fora da nossa terra, nós sabemos que Altamira também foi território indígena, que hoje é ocupado pelos kuben (o homem branco)”, afirma Kroire Xikrin, liderança e Secretário da Associação Indígena Berê Xikrin. Para ele, ocupar um espaço urbano neste 19 de abril é uma forma simbólica de reocupação e afirmação. “É um dia muito importante para nós, em qualquer lugar onde estivermos. Um dia de respeito, de visibilidade. Por isso viemos celebrar com nossos cantos, nossas danças, nossa cultura. É um dia que nos inspira força e memória.”
À tarde, entre 14h e 16h, o projeto esportivo “Kukràdjá Xikrin”, elaborado pela Associação para promover a prática esportiva nas treze aldeias que compõem a TI Bacajá, terá seu patrocínio assinado. A iniciativa contempla modalidades tradicionais como arco e flecha, corrida, cabo de guerra e pau de sebo, bem como o futebol, amplamente praticado entre os jovens Xikrin.

O esporte é compreendido como ferramenta de socialização, pertencimento e saúde coletiva. “Queremos que todos possam conhecer nossa cultura e assim sermos respeitados por ela”, afirma Beb Kamati Xikrin, presidente da Associação Indígena Berê Xikrin. O evento contará com a presença de jovens atletas, lideranças das aldeias, autoridades municipais, além de Sérgio Bacci, presidente da Transpetro, empresa patrocinadora através da Lei de Incentivo ao Esporte do governo federal.
A criação do projeto Kukràdjá Xikrin nasceu de conversas nas aldeias, com a participação ativa de anciãos, jovens, mulheres e lideranças. “Nossos projetos nascem coletivamente. Pensamos juntos”, conta. O objetivo era claro desde o início: ver crianças e jovens praticando esportes tradicionais, como corrida, arco e flecha e pau de sebo, convivendo entre as aldeias e se fortalecendo como povo.
Mas o caminho até o apoio institucional não foi fácil. “O maior desafio é que o recurso muitas vezes não chega até nós”, relata. Para garantir o financiamento, foi necessário escrever projetos, apresentar propostas e demonstrar capacidade de realização. A Associação Berê Xikrin assumiu esse papel de ponte entre a realidade comunitária e as políticas públicas.
O envolvimento dos jovens nas práticas esportivas tradicionais é, segundo ele, uma forma potente de manter a identidade viva. “Falar de esporte para nossa juventude é motivo de alegria. Mas não é só lazer. O esporte para nós é também uma forma de manter viva a nossa cultura”, explica. Quando os jovens participam de uma corrida tradicional ou manejam o arco e flecha, eles não apenas competem: repetem gestos dos ancestrais, escutam histórias dos mais velhos, reafirmam quem são.
“O arco e flecha não é só esporte. É símbolo de guerra, é técnica de caça, é conhecimento passado de geração para geração”, diz. Já a corrida tradicional é descrita como festa, desafio e celebração coletiva. “Tudo isso mostra para os nossos jovens que o nosso tem valor. Que eles podem se orgulhar da nossa cultura. Esse projeto nos ajuda a olhar para o futuro sem esquecer de onde viemos.”

O reconhecimento institucional é essencial para que os povos indígenas possam exercer sua autonomia sem abrir mão de sua identidade. “Essas iniciativas mostram que nós também podemos usar a tecnologia e as leis do Brasil para fortalecer a nossa cultura”, pontua, ao destacar a importância do apoio de patrocinadores. “Com essas parcerias, conseguimos mostrar que a nossa história, nossa festa, nosso esporte, nossa arte e nossa língua merecem respeito e visibilidade.”
Ela reforça que o protagonismo indígena é a base dessas conquistas. “O projeto é feito por nós, para nós, com a nossa associação. E nós Xikrin não podemos deixar de agradecer também às pessoas que estão ao nosso lado, apoiando nossa causa. Isso é resistência, isso é futuro.”
Bekre Xikrin tem 28 anos e é um dos atletas da Terra Indígena Trincheira Bacajá. Para ele, entrar em campo — seja com a bola nos pés ou o arco nas mãos — é muito mais do que competir: é uma forma de afirmar a identidade e a história de seu povo.
“Representar a minha comunidade é uma honra”, afirma Bekre. “Quando a gente entra em campo, seja para jogar futebol ou praticar arco e flecha, a gente carrega junto a nossa história.” Os esportes tradicionais, segundo ele, são heranças preciosas dos antepassados, e caminham lado a lado com o futebol, paixão que mobiliza os jovens Xikrin e já faz parte da vida nas aldeias. “É um jeito de mostrar que a gente sabe equilibrar tradição e modernidade com orgulho.”
Bekre fala com entusiasmo sobre a participação nos treinamentos previstos pelo projeto Kukràdjá Xikrin. Para ele, não se trata apenas de prática física, mas de formação. “Me sinto animado e responsável”, conta. “Essas oficinas vão ser importantes porque não é só jogar — é entender o jogo, aprender as regras, melhorar o preparo físico, ter mais domínio. Vai ajudar a gente a crescer como atletas e como pessoas dentro da nossa comunidade.”
A prática esportiva, segundo o jovem, também tem desempenhado um papel fundamental no fortalecimento da juventude indígena. Ele acredita que o esporte tem o poder de ensinar valores, estimular o autoconhecimento e manter a união do grupo. “O esporte ensina a gente a acreditar mais em nós mesmos. Quando a gente joga, a gente aprende sobre união, respeito, superação. E isso fortalece nossa juventude”, afirma. “A gente vira exemplo pros mais novos e mostra que é possível sonhar, lutar e vencer sem deixar de ser quem a gente é.”

Com o projeto se tornando público e ganhando visibilidade fora do território indígena, Bekre espera que a sociedade brasileira passe a olhar para os Xikrin com mais respeito e reconhecimento. “Eu espero que vejam que nós somos um povo com cultura forte, com organização, com história”, diz. “Esse projeto vai mostrar que o povo Xikrin não está parado no tempo. A gente vive a nossa tradição, mas também busca o nosso espaço com dignidade.”
Ao falar sobre o orgulho de mostrar sua cultura através do esporte, Bekre não esconde a emoção. “Tenho muito orgulho de ser Xikrin e de mostrar a nossa cultura por meio do esporte”, afirma. Para ele, correr, competir, cantar e exibir os grafismos tradicionais é também um ato de resistência. “Quando a gente corre, quando joga, quando mostra os nossos grafismos e cantos, a gente está dizendo para o Brasil: ‘Aqui está o povo Mẽbêngôkre Xikrin’.”
O esporte é, para Bekre, uma ferramenta de diálogo, de construção de pontes entre mundos. “Quero que o público não indígena veja a nossa força, veja nossa alegria, veja que nós também temos sonhos — e que lutamos todos os dias para realizá-los sem deixar nossa raiz para trás.”

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