O ano da COP 30 começou, em Belém – cidade que vai recebê-la – com um escândalo de proporções ontológicas: a vigorosa ocupação da sede da Secretaria de Estado da Educação por movimentos e povos indígenas, em protesto contra a Lei 10.820/2024, que, dentre outros inúmeros ataques à educação, extingue o Sistema de Organização Modular de Ensino Indígena (Somei), responsável pelo ensino médio presencial nas comunidades indígenas do estado, substituindo-o por um modelo de ensino à distância, baseado em aulas pela televisão.
Entramos na terceira semana de ocupação e, apenas ontem, o governador recebeu os movimentos indígenas para dialogar – e isso só ocorreu em função da pressão do Governo Federal, por meio da ministra Sônia Guajajara, que veio a Belém tentar mediar o diálogo.
Múltiplos relatos vindos dos próprios indígenas (aliás, parabéns para a sua comunicação popular, que nos ofertam uma visão verdadeira dos fatos) dão conta de que a reunião foi marcada por uma postura intransigente e arrogante por parte do governo. Hélder B. teria recebido as lideranças indígenas sob forte intimidação policial. Elas entraram no Palácio dos Despachos conduzidas sob escolta armada da tropa de choque da Polícia Militar do estado. Posteriormente, teriam sido tratados com frieza e arrogância. Inclusive, foram impedidos de registrar o diálogo proposto.
Não se avançou muito nessa reunião, mas um fato ilocutório maior afetou, profundamente, o governador do Pará. Segundo a mídia local e, igualmente, segundo as redes de comunicação popular dos movimentos indígenas, Hélder B. se exaltou quando as lideranças disseram que se ele não atender as reivindicações não vai haver COP. Os indígenas ameaçam paralisar Belém e o Pará, fechando ruas, estradas e aeroportos.
Essa ameaça tem proporções ontológicas…
O movimento, com sua intensidade e o apoio popular que vem recebendo, produz uma ruptura ontológica há muito aguardada por muitos paraenses: com ela, o governador Hélder B. deixa de ser o governador de todos os paraenses para se tornar o governador dos paraenses afeitos ao projeto da colonialidade dominante – presentemente, atualmente, um projeto neoliberal, que converte a educação “conteúdo programado” ou em aulas pela televisão.
Certo, há muito se sabia que esse projeto vinha sendo construído. Agora, os campos se demarcam e ganham visibilidade. Gritam, na verdade, visibilidade.
Se refiro uma “dimensão ontológica”, nesse acontecimento, é para ressaltar a coragem e a intensidade do movimento indígena – e dos movimentos sociais amazônicos, em geral – de reivindicarem seu espaço justo, no debate sobre a Amazônia.
O que vemos é, sinteticamente, um confronto de ontologias. De um lado, a ontologia do governador Hélder B., de seu governo e da camada social que representa ou julga representar – ou, ainda, da camada social que julga ser representada por ele. De outro lado, a ontologia dos povos tradicionais amazônicos, ou melhor, suas muitas e diversas ontologias, que representam os modos de ser e de estar na Amazônia que, historicamente, foram confrontados pelo projeto dominante, colonial.
Ontologia significa reflexão sobre a natureza do ser, individual ou coletivo; reflexão sobre sua existência e sobre sua realidade social.
Nesse sentido, o projeto ontológico das camadas sociais representadas pelo governador Hélder B. está centrado na compreensão de que têm representatividade suficiente para decidir o futuro da parte da Amazônia que está sob sua autoridade convencional. Por esse mesmo projeto ontológico, toda relação, toda comunicação que é feita com as demais camadas da vida social integrantes de outras perspectivas ontológicas é dispensável. O tratamento dispensado por Hélder B. aos indígenas, na reunião de ontem demonstra, claramente, essa diferenciação ontológica e esse desprezo que a caracteriza.
O que caracteriza, em síntese, o ethos colonizador do governador Hélder B. é o fato de ser marcado pela territorialização opressiva, pela construção de assimetrias, pela arrogância decorrente dessas assimetrias, pela crença de que seu projeto é superior.
Por sua vez, os incontáveis ethoi dos povos tradicionais amazônicos, apesar da violência histórica a que foram submetidos, estão em cena, mais uma vez, para dizerem quem são, o que desejam e, sobretudo, o que representam.
E, em meio a isso tudo, paciência. Meus amigos, paciência. A COP 30 já não vai ser mais a COP da Belenzinha maquiada e cheia de de reforminhas de canal. Vai ser a COP da voragem amazônica. Histórica e profunda…
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