And Santtos, o autor do Odivelismo, produziu quatro obras sobre ancestralidade indígena no prédio que abriga o Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Pará. Os murais externos Manto Tupinambá e Território Mairi, a já inaugurada Sala Verônica Tembé, no térreo, e o mural Jacei Tatá Tupinambá (Céu Tupinambá), no primeiro andar do PPGL, foram pintados, ao longo do primeiro semestre. A inauguração será no próximo dia 30, às 16h.
O artista And Santtos é autodidata, nascido no município de São Caetano de Odivelas, no Pará. Na infância e adolescência à beira do Mojuim, começou abrindo letras em canoas e barcos. Dali foi um passo para usar as trinchas, sprays, tintas e pincéis em telas, painéis, fachadas de comércios, barcos de pesca, cenários e muros urbanos, identificando suas próprias técnicas e linguagem.
O estilo poético e colorido de seus murais e telas que retratam de maneira original o imaginário popular desaguou no Odivelismo, fruto de trabalho de pesquisa, onde lança um olhar sobre os sujeitos e sujeitas amazônicos a partir da ancestralidade indígena, com uma rica composição de cores e elementos regionais. A inspiração está associada às raízes e ao cotidiano do artista, que faz referência ao “Boi de máscaras”. Dentre a produção e pesquisas, sobressai a universalidade do olhar crítico e poético.
“É emocionante trazer este trabalho sobre algo que não falávamos muito há algum tempo, as nossas raízes, a nossa ancestralidade. Fui contemplado em fazer esse Manto Tupinambá aqui no prédio do PPGL, através de uma pesquisa da professora Ivânia, e ela me colocou nesse universo, no qual eu ainda não tinha me auto reconhecido. Se a gente está hoje aqui, contemplando tudo isso, através de um coletivo, de uma somatória, é porque nós reconhecemos realmente este território como Mairi. E este território é nosso, a preservação tem que partir daqui e não de fora, nós temos sim que fazer a nossa voz enquanto preservação, em todos os sentidos, ambiental, cultural, social, em todos os patamares”, afirma And Santtos.
Mairi era a denominação indígena para a região constituída hoje pelos estados do Pará, Maranhão, Amapá e Amazonas antes da invasão europeia. O enunciado Mairi é indígena, do Tupi antigo, trata-se do local onde viviam os filhos de Maíra, principal ancestral Tupinambá. Para muitos povos indígenas, o sagrado estava e está relacionado a Maíra, ancestral responsável pela criação de rios, floresta, homens, mulheres e todo o tipo de saberes.
“No brasiliano e nheengatu davam a cidade de Belém do Pará o nome de Mairy” (Frederico Edelweiss)
“Mairi: É o nome que os indígenas do rio Negro, principalmente, davam a Belém, capital do Estado do Pará, durante o regime colonial” (Nunes Pereira)
Ainda que registros como estes citados existam, o enunciado Mairi foi silenciado a partir de seu primeiro registro escrito, feito pelo frade franciscano francês André Thevet, no livro “A Cosmografia Universal de André Thevet – cosmógrafo do rei”, publicado em 1575, após a sua viagem ao Brasil entre novembro de 1555 e janeiro de 1556.
Este livro é um marco nos registros de viajantes que vieram ao Brasil, pois apresenta ricos detalhes de práticas culturais e crenças das sociedades indígenas, entre elas a narrativa do ancestral dos Tupinambá, Monan, que até então não tinha sido registrada pelo colonizador. Theveth descreveu o que seria o primeiro ancestral Tupinambá, o grande Monan, “que teria as mesmas atribuições que a Deus” e uma linhagem de “heróis civilizadores”: Monan; Irin-magé = Maire-Monan; Sommay – Sumé – filho de Mair-munhã; Maire-pochy e seus descendentes.
Porém, ao afirmar que o significado vem do francês, Theveth o incluiu na narrativa, afirmando Mairi ser “o lugar do francês”. Desde a publicação de Theveth (1557), os enunciados Maire, Mairi, Mairi-Monan, Maíra e todos os outros referentes à ancestralidade indígena tupi vêm sendo silenciados. Se em alguns verbetes ou dicionários os autores fazem a designação, mesmo que incorreta dos enunciados, em outros, sequer existe o registro. Outros enunciados indígenas também são silenciados nesta tradução que seguiu o molde do sistema colonizador, cristão e europeu.
O Assojaba Tupinambá (Manto Tupinambá) é uma vestimenta sagrada, utilizada em rituais e composta por penas de aves nativas como o Guará. A preservação do território e de sua natureza garante que a colheita das penas seja feita de forma respeitosa e também protege a vida que flui no Manto.
A indumentária emplumada representa para o povo Tupinambá uma confluência entre a dimensão espiritual (os Encantados e os antepassados), o meio ambiente, a economia e a agroecologia e a transmissão de saberes. Para além do notável significado histórico, o Manto também traz em si uma imensurável importância para o contexto presente, a partir de sua forte presença identitária que garante a permanência da cultura, memória e cosmologia do povo Tupinambá a cada geração. O Manto expressa o protagonismo indígena em suas produções, rituais e tradições.
Os pássaros, assim como outros animais, eram sagrados que poderiam encarnar a força dos seres encantados. Ao usar o manto de plumas, um xamã invocava forças poderosas para intermediar o mundo dos vivos e dos mortos. Para os mantos, usava-se as penas do Guará. Penas de araracanga ou arara vermelha também eram utilizadas aproveitando não as penas vermelhas e também as azuis, verdes e amarelas para compor o manto.
Os povos indígenas eram profundos conhecedores do céu. Em vários relatos dos primeiros cronistas e religiosos europeus no continente americano, há registros desses saberes. Mesmo quando consideravam os indígenas de “mentalidade inferior”, reconheciam surpresos a precisão com que identificavam as estrelas, as constelações e diversos fenômenos astronômicos. Suas cosmologias desafiavam e encantavam os olhos europeus.
Em 1614, o frade capuchinho francês Claude D’Abbeville esteve na região e fez um minucioso registro do céu Tupinambá em sua obra intitulada Histoire de la mission des pères capucins en l’isle de Marignan et terres circonvoisines où est traicté des singularitez admirables &, des moeurs merveilleuses des indiens habitans de ce pais. Graças a ele e aos estudos comparativos de astronomia cultural é possível reconstituir a localização de parte das constelações Tupinambá. Em suas anotações, feitas em francês e na língua Tupinambá, D’Abbeville indicou os nomes e as regiões onde elas estavam situadas no céu ocidental conhecido naquele momento histórico.
“Jacei Tatá, em Tupinambá, significa estrela, por isso escolhemos esse título para a obra de And Santtos aqui exposta. Jacei Tatá Tupinambá, traduzido para o português, significa O Céu Tupinambá. Na parte central da pintura está o céu verossímil visível em Belém, ao lado esquerdo as constelações do sul celestial e do direito, as do norte celestial. Nas laterais, os registros de estrelas e constelações feitos por D’Abbeville não localizados no céu”, explica Ivânia Neves.
* Com informações de Camille Nascimento, doutoranda do PPGL/UFPA.
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