Publicado em: 10 de outubro de 2025
Em Belém, outubro não é apenas um mês do calendário: é um tempo consagrado. É quando a cidade se veste de fé, cores e aromas, deixando-se atravessar pelo “espírito nazareno” que a cada ano renova promessas e esperanças. As ruas, os lares, os quintais e até as mangueiras parecem respirar um mesmo sopro, marcado pela presença da Virgem que conduz passos, vozes e sentimentos.
No coração dessa atmosfera singular, pulsa o Círio de Nazaré. Festa que é procissão, mas também banquete, oração e comunhão. Se a berlinda com a imagem da santa reúne milhões nas ruas, é nas mesas que o sagrado se prolonga, ganhando forma concreta na partilha do alimento. Entre todos os pratos que celebram a Virgem, a maniçoba se ergue como oferenda maior, alimento que se torna rito e memória coletiva.
Falar da maniçoba no almoço do Círio é, portanto, falar de uma dádiva. Não apenas de uma iguaria cabocla que percorreu séculos, mas de um alimento ritualizado que sustenta corpos, vincula almas e reafirma identidades amazônicas. É nesse entrelaçar de fé, sabor e pertencimento que a maniçoba se consagra como expressão maior da dádiva divina na mesa paraense.
É Círio outra vez. No próximo 12 de outubro, esta afirmação ecoará inúmeras vezes pelo território belenense. Afinal, é o segundo domingo do mês, quando Belém se deixa tomar pelo “espírito nazareno”, vestindo uma atmosfera rara, distinta daquela que, de modo regular, compõe o cenário cotidiano da capital. Nesse tempo sagrado, a cidade se recria: os crentes, e até mesmo os que não o são, renovam a pintura das casas, enchem as despensas na espera dos parentes que chegam de longe. Ruas, praças, prédios e até as mangueiras recebem enfeites e novos contornos, como se também fossem tocadas pelo sopro dessa atmosfera, que se intensifica ao som das músicas nazarenas entoadas pelos “quatro cantos” da cidade.
E há mais: Belém é tomada não apenas pelas cores e cânticos, mas também pelos aromas. Um perfume denso, inconfundível, percorre as ruas e anuncia, sem precisar de palavras, que a maniçoba está em fogo brando, espalhando-se como se fosse incenso que consagra a cidade inteira.
No coração da festa, o almoço do Círio ocupa lugar de centralidade, prolongando em comunhão as homenagens à Virgem. Heraldo Maués (2008) o define como um verdadeiro banquete sacrifical. E, no centro desse banquete, reina a maniçoba — prato sagrado, sem o qual a celebração parece inconcebível.
Mas onde começa o percurso dessa iguaria? De onde brota esse ciclo da mandioca que culmina no prato sagrado? Denys Rodrigues, mandiocultor e dono de um pequeno retiro na comunidade de Taiassuí, em Benevides, responde a parte dessa indagação. Segundo ele, a roça que dá origem à maniva deve ser plantada seis meses antes do Círio, pois, se passar desse tempo, a folha amarga e já não serve à feitura da maniçoba. É um saber antigo que conecta terra, tempo e fé.
O preparo, contudo, varia. Dona Maria do Socorro, católica devota que vive em Ananindeua, anualmente oferece o almoço do Círio. Ela inicia sua maniçoba sete dias antes: põe a maniva pré-cozida no fogo com toucinho branco refogado no alho, chicória e louro. Diariamente, manhã e tarde, reacende o fogo sob a panela. No sábado que antecede o Círio, junta-lhe as carnes e vísceras, já dessalgadas e refogadas em temperos que perfumam a casa. Assim, aos poucos, a iguaria ganha corpo, cor e espírito. “Quanto mais tempo de fervura, mais escura e saborosa se torna”, confidenciam as cozinheiras, revelando o segredo que transforma o simples em dádiva.
Esse banquete, como lembra Maués (2016), é um rito de consagração que começa antes do Círio, quando a imagem peregrina da Virgem percorre as casas, purificando lares e experiências. Nesse gesto, as comidas — sobretudo a maniçoba — não apenas alimentam, mas também vinculam almas, tornando-se portadoras delas. Servir um prato é ofertar o melhor de si, e recebê-lo é nutrir não só o corpo, mas o espírito católico, reafirmando fé e laços sociais.
Esse vínculo aparece vivo no relato de dona Fátima Rodrigues, moradora de Belém. Seus filhos, que vivem em Brasília e São Paulo, retornam todos os anos para o Círio. Ela prepara a maniçoba em fartura, suficiente para a mesa do almoço, para que os filhos a levem em viagem e ainda para doar aos vizinhos que, por algum motivo, não a cozinharam. Nesse gesto, a maniçoba é ponte entre distâncias, sustento de memórias e símbolo de pertença.
Assim, os ciclos rituais da mandioca, em sua singularização paraense, revelam dimensões que ultrapassam o simples circuito de dádivas materiais. Neles habitam saberes tecidos entre humanos e não humanos, práticas de consumo que são arranjos culturais, redes híbridas que congregam sociotécnicas e afetos. A maniçoba, nesse contexto, é linha vital: trama que fortalece identidades caboclas e amazônicas, gesto que, todos os anos, reúne os belenenses em torno da Virgem, em comunhão com parentes, vizinhos, compadres, comadres e chegados. Comer juntos, nesse tempo, é também viver juntos — em fé, em memória e em pertença.
Assim, a maniçoba não é apenas um prato: é rito, oferenda e vínculo. Sua preparação lenta, seu sabor denso e sua cor escura falam do tempo que amadurece, da fé que aquece e da memória que se perpetua. Ao redor de uma panela fumegante, não se cozinha apenas alimento: cozinha-se pertença, renovam-se laços, celebra-se a vida.
O almoço do Círio, com sua maniçoba generosa, é testemunho de que a comida pode ser mediação entre o humano e o divino. Ao servir a iguaria, o devoto oferece mais que sustento: entrega parte de si, partilha sua fé, projeta sua memória para além da mesa e do tempo. A maniçoba, nesse sentido, é símbolo de um banquete onde corpo e alma se nutrem em simultâneo.
Por fim, os ciclos rituais da mandioca, condensados na maniçoba do Círio, revelam a força criadora das tradições caboclas e amazônicas. Neles, fé e alimento se entrelaçam como fios inseparáveis de uma mesma tessitura, permitindo que Belém reafirme sua identidade coletiva. Todos os anos, no mesmo período, a cidade se reinventa em devoção e comunhão, reunindo vizinhos, compadres, parentes e amigos. Comer juntos, nesse tempo sagrado, é também existir juntos — em fé, em memória e em pertença.

Comentários