Minha cabeça funciona com um eterno delay. Do dicionário: delongado, prorrogado, atrasado, demorado, dilatado, protelado, retardado. Só que aquele combo da pessoa distraída, tranquila e de boa ficou incompleto em mim. Não sou artista. Não gosto de mato e viver sem wifi. Não tenho a fala mansa e nem a aparência zen. Falo muito. Falo rápido. Ah, e falo alto, talvez para suprir a baixa estatura e me fazer ser ouvida. Sou obsessiva por concluir tarefas. Odeio perder tempo. Também queria ser discreta e uma pessoa reservada, mas consigo contar da minha vida até para desconhecidos. Amo yoga, mas não consigo meditar. E olha que eu já aprendi que meditar não é fazer nada. É pensar profundamente. E eu penso muito. Mas sempre fora de contexto. No puro delay. Enquanto tomo banho, penso no que falei há três dias pro meu marido e falo com ele como se essa conversa tivesse acontecido há 2 minutos. Ele nunca entende no inicio da frase. Também deve ser difícil pra ele me aceitar quase 15 anos pensando e falando fora de contexto. E deve ser por isso que meu artista preferido ainda é Marcel Duchamp. O artista francês que criou o ready-made* – aquele momento em que ele revolucionou a história da arte ao escolher um objeto sem valor estético, mudando seu nome, o ângulo e o lugar e o transformando em uma obra de arte – fora de contexto.
E não é que a sugestão de escrever para ajudar a organizar pensamentos fez sentido? Santa psicanálise. Por exemplo, comecei esta crônica porque dia 08 de março é comemorado o dia das mulheres e perdi a chance de escrever algo para contribuir com a luta feminista. Aliás, a única coisa que me lembro do tema nesse dia foi que ganhei um bombom na academia e que fiquei puta da vida, mas gostei do chocolate. A realidade muitas vezes é só banal mesmo. Queria poder escrever que perdi a oportunidade da data porque estava inserida em algum processo de criação imersiva, de autoconhecimento, de escrita intensa na tese do doutorado e me justificar dizendo que é preciso se fechar para criar coisas incríveis e potentes. Mas eu só posso dizer honestamente que, no dia 8 de março, talvez eu estivesse pensando ou no passado ou no futuro, fora do presente. Fora do contexto. Por isso comecei a escrever do delay, para me justificar e falar da minha promessa de pesquisar profundamente sobre a obra das mulheres artistas do meu movimento cultural preferido. A crônica ia ser para me lembrar de que tenho que pesquisar o trabalho de Suzanne Duchamp, Hanna Hoch, Elsa Von Freytag-Loringhoven, Sophie Taeuber-Arp e Beatrice Wood. Mulheres incríveis que misturavam crítica politica com fantasia e lutaram para serem reconhecidas como artistas modernas nas décadas de 1920 e 1930. Hannah Hoch, por exemplo, foi uma artista alemã ligada ao movimento dadaísta e uma das primeiras a criar fotomontagens e colagens, uma técnica que se tornou essencial para o dadaísmo e para o surrealismo. Já Elsa Von Freytag-Loringhoven foi pintora, desenhista, escultora e poetisa, além de trabalhar com performance e de ter um papel essencial no desenvolvimento da arte conceitual. Inclusive alguns historiadores alegam que A Fonte, de 1917, o mais famoso dos ready-made seria de autoria dela. Capaz de ser. Elsa era uma mulher à frente do seu tempo, não só ousada, mas, sobretudo, um espírito contestador e criativo. Uma verdadeira dadaísta.
O dadaísmo foi um movimento de vanguarda surgido em 1916, em Zurique, como uma critica profunda à Primeira Guerra Mundial. Os dadaístas queriam a criação de um novo sistema. Anárquico. Mas mesmo os homens de vanguarda não enxergavam as mulheres como colegas de profissão no mesmo patamar. E, por isso, artistas como Hannah e Elsa não ficaram verdadeiramente conhecidas no mundo das artes. Por causa dos colegas homens que não viam que a produção artística delas estimulava uma nova forma de ver o mundo. Hannah organizava seu pensamento em colagens utilizando diferentes substratos, como fotografias e textos recortados de jornais e revistas populares, juntando coisas aparentemente sem conexão, mas que juntas demonstravam o poder do simbolismo. Hum, organizar as coisas fora da cabeça faz ter sentido tudo que parecia fora de contexto. Obrigada Hannah. Lembro-me de você agora ao escrever essas linhas porque, também as palavras, quando organizadas fora do contexto caótico da minha cabeça, assumem uma organização que do lado de dentro não existe.
Só agora enquanto escrevia percebi a conexão do meu delay com o fato de Marcel Duchamp ser meu artista moderno preferido. E escolhi que vou pesquisar mais sobre a Hannah Hoch e Elsa Von Freytag-Loringhoven e várias outras artistas mulheres. Um clichê, eu sei. Mas escrever também é um processo terapêutico e assim eu descobri que minha preferência pela arte conceitual e pelos ready-made é reflexo do meu puro delay na vida e da vontade de eu também ser diferente. Ainda que minha facilidade para escrever seja justamente por ser igual a todo mundo (inclusive, parêntesis, o surrealismo, movimento artístico que nasceu do dadaísmo e de Marcel Duchamp, também é o movimento preferido de todo mundo, fecha parêntesis). Sou igual a todo mundo. Só um pouco mais atrasada para alguns. Avoada para outros. Aquariana para quem acredita em zodíaco. Sonsa para quem acredita em maldade. Meu manifesto dadaísta, que parece sem sentido, mas não é, me serve como um lembrete fora de contexto. Mulheres mudam o mundo. Um dia ainda vou criar meus próprios ready-mades. Por enquanto crio minhas crônicas.
*Um ready-made é um termo criado por Marcel Duchamp para se referir a uma escultura já pronta. Um objeto tirado do seu contexto para ser apreciado como obra de arte. O primeiro dos seus ready-mades foi uma roda de bicicleta e um banco, em 1913. Mas o ready-made mais famoso é a obra AFonte, de 1917, reconhecida por ser o símbolo da arte conceitual e de um momento decisivo na história da arte.
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