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Oitenta e cinco anos. Vai ser semana que vem o aniversário dele. E hoje, cinco dias antes da data, já em clima de festa, comemoro que se completa uma semana desde que eu vacinei minhas filhas com a primeira dose da vacina da Pfizer contra a Covid-19. Além disso, há seis dias minha grande amiga, irmã de vida, defendeu sua tese de doutorado sobre abordagem cientifica no ensino e na prática do restauro, lá na UFBA. Em comum, esses dois eventos antecipam o aniversário dele e nos lembram do poder que é conservar. A matéria e a vida. As coisas e as pessoas. E as coisas que simbolizam pessoas. O aniversário dele está chegando e eu lembro quando o conheci. O ano era 2008 e eu tinha acabado de entrar na faculdade de arquitetura e urbanismo, lá na FAU de Belém. Depois eu me aproximei mais dele em 2017, quando ele fez oitenta. Eu estava bem feliz em trabalhar com ele e, nesse ano, aprendi um monte sobre o que significa a existência histórica do homem, a antiguidade da vida e a fragilidade da nossa memória. E aprendi sobre pessoas. Algumas ruins e outras que levo no coração. Porque, no fim das contas, tudo gira em torno das pessoas.

Em 2019, ele fez oitenta e dois e eu dei um até logo ao nosso dia a dia porque fui fazer outras coisas. Também em 2019 começou uma fase cruel pra ele, em que passou maus bocados com umas pessoas que começaram a trabalhar com ele sem entender o que ele realmente faz. Em 2020 veio a pandemia do corona vírus. Ele ficou meio esquecido e, em 2021, ele fez oitenta e quatro. Firme e forte. Hoje, em 2022, ele chega aos seus oitenta e cinco. Está cansado, julgado, ameaçado, mas continua vigente como soberano em território brasileiro. E faltam cinco dias para o aniversário dele.

Somos o que lembramos. Ele, que nos seus oitenta e cinco luta para tornar visível a passagem do tempo e concretizar a lembrança do que já fomos. Ele, que nos estimula tanto a recordar como a imaginar. Nesse aniversário, quero lembrar que as coisas sempre se conectam. Passado, presente e futuro. Juhani Pallasmaa* diz que não existimos apenas na realidade espacial e material, também habitamos em realidades culturais, mentais e temporais. O que ele quer dizer é que nossas recordações são memórias conectadas a um lugar e a objetos, são o que fornece nosso senso de identidade pessoal. Se a arquitetura nos insere no tempo e no espaço, preservar os testemunhos materiais do passado nos permite experimentar a continuidade da cultura. As coisas instituem um lugar e concentram em si significados. A arquitetura, uma dessas coisas, ao perdurar no tempo, cria um sentido de presença e de ordem. Nosso patrimônio cultural. Para as pessoas. No fim, tudo é sobre pessoas e histórias, lembram? Ele lembra.

Faz oitenta e cinco anos que ele segue dizendo todo dia que o objeto que ele protege está materializado na coisa, mas não é essa coisa em si e sim o seu significado simbólico, representado pela coisa. Eu sei, às vezes ele é meio difícil de entender. Mas, quando a gente o conhece um pouco mais, percebe que o que ele fala é sobre como manter e preservar, tanto as pessoas quanto as histórias. De aniversário para ele, eu queria reforçar o poder da ciência. Porque ele nos fornece todo o aparato jurídico, mas só a ciência protege de verdade. A mesma ciência que permite prolongar a vida do nosso patrimônio cultural também permite que nossas crianças sejam vacinadas para que possam ter suas histórias e presenciar a continuidade da cultura por meio das nossas edificações e bens patrimoniais. A arquitetura que permanece tem aquela aura de vitória. Ela nos defende contra o terror do tempo. A vacina contra a covid-19 também tem uma aura de vitória. Ela nos defende contra o horror e a angústia da morte. As coisas e as pessoas só permanecem pelos cuidados e pelo avanço da ciência. Nesse contexto, vencer é permanecer no tempo. No fim, é tudo sobre as pessoas. Ele tem oitenta e cinco anos, mas sabia disso desde que nasceu. Feliz aniversário, Decreto-Lei nº 25 de 1937*. Se é para tombar, tombamos. E permanecemos.

**Juhani Pallasmaa é arquiteto, nascido na Finlândia em 1936. Autor de inúmeros artigos sobre filosofia, psicologia e teoria da arquitetura e da arte, bem como dos livros: Os olhos da pele (2011), As mãos inteligentes, A imagem corporificada (2013), Habitar (2017) e Essências (2018).

**O Decreto-Lei nº 25 de 1937 é a Lei nacional de preservação do patrimônio cultural brasileiro e uma normativa que regulamenta as relações jurídicas desta preservação.

Fonte: https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/13.149/4528
Igreja Nossa Senhora do Carmo, Ouro Preto (MG).
Fonte: http://portal.iphan.gov.br/pagina/detalhes/373/

Luciana Florenzano
Mãe de gêmeas, arquiteta e urbanista, doutoranda em patrimônio-teoria-crítica, especialista em história da arte, eterna estudante. Gosto de palavras, da arquitetura que é arte e de fazer abordagens transversais. 

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