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O turismo caracteriza-se pelo deslocamento de um ou mais indivíduos que, voluntariamente, saem do que lhes é residencial, em termos habituais, e vão para um determinado local. No conceito mais geral, o turismo é de cunho leve e propício à diversão dos indivíduos quando presentes nos locais de objetivo. Muitos brasileiros viajam pelo mundo e por seu próprio país em busca de diversão. Afinal, é bom se divertir um pouco, né? Viajar é incrível. Uma praia bonita atrai demais. Um hotel agradável e que trata bem é melhor ainda. Viajar é incrível. Conhecer novas culturas, novos monumentos, novos espaços, novos indivíduos e, principalmente, adquirir novas experiências é, de fato, incrível.

Dada a dicionarização do termo, os seus comuns usos e o que vem de benefício a partir deste, será abordado um meio, não tão conhecido assim, do turismo. As ideologias polarizantes – isto é, divergentes entre si – do Brasil e ao redor do mundo já o comungam, mesmo que para as massas ele seja desconhecido. O “turismo de guerra” é o que quero abordar. Diferente do uso comum do turismo, o turismo de guerra é perverso e oportunista. Veja, não falo do turismo feito a países ou regiões que sofreram os males de guerras passadas, mas aos países que estão em circulação atual de guerra e que recebem turistas. Esses turistas não vão com o intuito de ajudar, mas o de se mostrar. Exemplificando esta situação, a contemporaneidade da guerra na Ucrânia recebeu milhares de pessoas que, em sua legitimidade, ajudaram com suprimentos básicos, transporte, entre outras coisas, os refugiados daquela região; mas, e este é o âmago do fenômeno, o país também recebeu gente do mundo inteiro – empresas, políticos, ONGs duvidosas, celebridades – usando tal tragédia com o desígnio de autopromoção.

O que aconteceu para com o deputado estadual Arthur do Val, conhecido popularmente como “Mamãe Falei”, é a mais pura representação de tal ocorrência. Para o sujeito, uma fila de refugiadas frágeis emocionalmente, psicologicamente e socialmente, é um prato cheio; afinal, segundo este, “elas são fáceis, porque elas são pobres”. E os absurdos vão de mal a pior, contudo, pela excelência e educação que preza este cargo, não valem a pena serem escritos. Disse que prestou ajuda humanitária, entretanto, o que me ocorre pensar que as duas palavras – “ajuda” e “humanitária” – devem ter outro sentido na mente do deputado; pois a única coisa que vejo é o assédio e o que mais instintivo vem do pensamento; será isto a tal “ajuda humanitária”? Na paz e na guerra, a condição feminina deprave-se em absoluto; entretanto, isso não ocorre por conta delas, mas pela mente perversa do homem que se perde em sua podridão.

Jamil Chade, jornalista que cobre relações diplomáticas e conflitos entre nações, sendo sensível com refugiados, escreveu um texto para Arthur do Val. O título é “Carta para Arthur do Val: a condição feminina na guerra e na paz”. Neste, Jamil é categórico: não pode haver romantização e muito menos sexualização na miséria. A miséria é o estado de carência absoluta dos meios de subsistência, nada mais. Usá-la para se auto satisfazer é, acima de tudo, um processo de desumanização para com aquelas pessoas. Jamil conta diversos relatos; entre eles, dois merecem destaque: as acusações das tropas de paz da ONU de estupro e abusos com mulheres, meninas e meninos e uma estória particular sua. A primeira abre bem o assunto que deve ser comentado: paladinos da moral banhados de sua própria imoralidade. Segundo Jamil, no Haiti, de acordo com investigações e auditorias, as tropas de paz da ONU foram acusadas de estupro e abusos. Ele relata um caso específico onde um menino era “semanalmente estuprado por oficiais, em troca de bolachas”. Cabe a pergunta: ele era fácil demais, Arthur? O segundo caso é também chocante. De sua estória particular, o jornalista conta que, quando foi para o oeste da cidade de Bagamoyo, na Tanzânia, visitou um hospital e, enquanto esperava para realizar uma entrevista como entrevistador com o diretor, decidiu sair do prédio em ruínas e andar por um dos pátios do local. Avistou lá duas garotas brincando: “Não tinham mais de 10 anos de idade”. Ele até chegou a perguntar o que ambas faziam ali, mas elas estavam mais entretidas com o fato dele estar no lugar e menos sobre contar seus próprios relatos; de tal modo, este desistiu de fazer perguntas. “Expliquei que era jornalista brasileiro e, para dizer meu nome, mostrei um cartão de visita, que acabou ficando com elas”, atalha o jornalista. Acabando a conversa, Jamil vai falar com o diretor. Meses depois, na Suíça, este abre um envelope, escrito à mão, vindo de Bagamoyo. “Pensei comigo: deve ser um erro e a carta deve ter sido colocada na minha caixa por engano. Eu não conheço ninguém em Bagamoyo. Mas o envelope deixava muito claro: era para Jamil Chade”, relata o profissional, e, continuando: “Antes mesmo de entrar em casa, deixei minha sacola no chão e abri o envelope. Uma vez mais, meu nome estava no papel, com uma letra visivelmente infantil. Eu continuava sem entender. Até que comecei a ler. No texto, em inglês, quem escrevia explicava que tinha me conhecido diante do hospital e que tinha meu endereço em Genebra por conta de um cartão que eu lhe havia deixado. Como num sonho, as imagens daquelas garotas imediatamente apareceram em minha mente. Mas o conteúdo daquela carta era um verdadeiro pesadelo. A garota me escrevia com um apelo comovedor. ‘Por favor, case-se comigo e me tire daqui. Prometo que vou cuidar de você, limpar sua casa e sou muito boa cozinheira.’ A carta contava que sua mãe havia morrido de Aids – naquele mesmo hospital – e que seu pai também estava morto. Cada um dos oito filhos fora buscar formas de sobreviver e ela era a última da família a ter permanecido na empobrecida cidade. ‘Preciso sair daqui’, escrevia a garota. A cada tantas frases, uma promessa se repetia: ‘Eu vou te amar.’ Uma observação no final parecia mais um atestado de morte: ‘Com as últimas moedas que eu tinha, comprei este envelope, este papel e este selo. Você é minha última esperança.’”, descreve em seu texto de uma melancolia sem limite. Em uma de suas últimas palavras, Jamil diz: “Deputado, talvez o senhor classificaria essa pessoa no grupo de ‘meninas fáceis’. Eu, porém, chorei de desespero e de impotência diante daquele pedido de resgate”. A estória é triste, sim, entretanto, de mais importância vem a sua realidade e, factualmente falando, seu caráter pedagógico. Tirando o fato do (s) comentário (s), a viagem em si foi feita por uma inspiração oportunista. O turismo de guerra foi feito em sua mais pura potência e significado. Por pouco escapava “Mamãe Falei” como herói de guerra. Por tão pouco…

Ao final, trago o que disse Freud: “A acentuação do mandamento ‘Não matarás!’ garante-nos justamente que descendemos de uma longuíssima série de gerações de assassinos, que tinham no sangue o prazer de matar, como talvez ainda nós próprios”. Para além de todas as crenças, a civilização vem como uma resposta que assassina o nosso instinto de assassinar; mata o que em nós vive: a necessidade de matar. A guerra, portanto, é o que de mais sujo e amundiçado intercorre numa sociedade civilizada. A guerra é a maior barbárie. A sua existência não é civilizada, no entanto, humana: apenas o caráter humano comunga-a; de modo que do civilizado ela não possui palco, do bárbaro e inescrupuloso, sim. E quem usa esta para atalhar as benesses de si transparece uma concepção antiga, mas atual: as chagas expostas são terreno fertil para parasitas – e o mundo está repleto deles!

João Paulo Duarte Marques da Cruz
João Paulo Duarte Marques da Cruz Estudante do Colégio CEI, apaixonado por literatura, cinema e política. E-mail katrinadmc@hotmail.com

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