Uma das maiores dificuldades da contemporaneidade é a de se deslocar do mundo dos likes para o mundo real. O encontro natural que ocorria entre duas pessoas virou uma grande batalha pessoal porque não é tão somente do outro que nos distanciamos, estamos nos distanciando de nós mesmos.
É comum ouvirmos falar da sociedade como “sociedade da transparência ou da exposição”. Eu acredito que o mais apropriado é sociedade da espetacularização. É verdade que tudo está à mostra, exposto, voltado para fora. Mas essa sociedade sem vergonha é a que mais se envergonha e de transparente não tem nada. A negatividade é retirada de cena. Mostra-se apenas aquilo que se acredita digno de admiração e aplauso, aquilo que se quer que o outro conheça ou que se imagina que deseja ver. Assim, é permitido expor tão somente o que a sociedade entende por belo, interessante, impactante. Daí o esforço para “postar” a foto do melhor sorriso, do melhor prato, do melhor ângulo, da melhor viagem, enfim, do quanto a vida é incrível. Incrivelmente inventada. A sociedade da exposição exibe só o que é potencialmente aprovado, valorizado. Isto porque o que está em jogo é a dinâmica da busca pelo ideal.
O olhar do outro é que dá ao sujeito uma espécie de confirmação da sua importância. Quando comparamos com o mundo animal, a dinâmica é bastante diferente. O animal ao nascer levanta-se sozinho. As tartaruguinhas, ao eclodir dos ovos, dirigem-se à agua numa caminhada solitária e arriscada. Nós, humanos, se ninguém alimentar, cuidar e proteger, morremos. A mãe ou quem desempenha essa função, no momento em que decifra, nomeia e traduz o choro ou inquietação do bebê, confirma a sua existência. É preciso o olhar do outro para que a criança se constitua enquanto sujeito desejante. Sob os cuidados maternos a criança vai amadurecendo até conseguir lidar com o mundo. Mas estará sempre dependente da confirmação de um outro olhar.
No mundo tecnológico o sujeito passa a desenvolver estratégias em busca de holofotes. Filtra fotografias, manipula vídeos, enfim, usa todos os meios possíveis que a inteligência artificial oferece para atrair o olhar do outro. Todos querem sua melhor versão. Estamos diante da gourmetização do sujeito que usa o discurso de um suposto melhoramento para criar a ilusão da própria imagem, estética ou ética. E assim, começa a se perder de si mesmo.
Sites de relacionamentos funcionam como prateleiras onde é possível escolher o “produto”. Quando o botão “match” é acionado, significa que aceitou o perfil do outro. E, desse momento em diante, com a evolução da conversa, em algum momento haverá o encontro “ao vivo e em cores”. Aí começa a problematização. Como se relacionar amorosamente no mundo real, diante de uma construção imagética virtual? Como sair da telinha e ir para o olho no olho? O sujeito se sente inibido, envergonhado, aterrorizado com a possibilidade de mostrar sua real imagem. A sua melhor versão do Tinder, aquelas fotos tantas vezes expostas desavergonhadamente, agora no real, sente-se atravessado pelo sentimento de vergonha e de medo da não aceitação.
O terror do encontro no real é tão grande que, não raras vezes, as pessoas recuam diante do convite do outro. A imagem que elas têm de si não condiz com o que era exposto. É carente de verdade, pois foi criada para seduzir. No chat o sujeito elege a melhor foto, no melhor local e tem tempo para pensar sobre o que escrever de forma que capture o outro. No virtual é possível manter o sofrimento, em razão do sentimento de fracasso, camuflado naquilo que tenta exibir como sua melhor versão. Mas, frente a menor expectativa do encontro no mundo real, apavora-se porque traz a possibilidade de escancarar a “fraude”. A sensação de vulnerabilidade invade e a pessoa se sente nua diante do outro, sem saber como atuar no aqui-agora.
A demanda social de um corpo belo, rosto jovem e indivíduo “bem sucedido” é a responsável pelo desencadeamento da vergonha, insegurança e inibição. Óbvio que nem todos que se sentem feios sentirão vergonha. Essa afeta somente aqueles que trazem o ideal de beleza como algo inatingível. O mecanismo da inibição acontece porque houve uma ruptura entre o que o sujeito é e o que deseja ser. Então, ele sai de cena para proteger onde o narcisismo sangra.
A mentira sobre si no mundo virtual esconde estigmas físicos que dificultam ou impossibilitam o encontro presencial. A espontaneidade, bem como outros recursos presentes nas relações socias, perdem seu valor. O sujeito tem o desejo de mostrar o seu mundo interior – ainda que seja relatando as bobagens do cotidiano – tão somente em busca da confirmação de si pelo outro. Chamamos a isso de extimidade. Há excesso de exposição; entretanto, não há intimidade. A intimidade é poder falar abertamente sobre o que dói, causa medo ou vergonha.
O sentir vergonha não fala apenas de ser julgado por alguém, mas principalmente do julgamento que o sujeito tem de si. A vergonha surge da frustração de não preencher os requisitos socialmente impostos e acaba por isolar o indivíduo em seu mundo de sofrimento, inviabilizando o encontro de duas subjetividades. Assim, o sujeito faz tudo para atrair, mas, muitas vezes, não se disponibiliza para viver com o outro uma relação mais íntima, profunda e sofisticada.
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