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#currentecalamo

Este texto foi escrito no correr da pena, hoje, sábado, pois dei cabo da versão original, escrita durante a semana, em algum beco sem saída da minha floresta rizomática do Word.

Ao cabo de 10 anos de leituras esporádicas, o tempo de uma Odisseia, concluí Justiça para Ouriços,  uma das obras mais difíceis que já li. Este tijolo de quase quinhentas páginas está para a Filosofia como Finnegans Wake, de Joyce, está para a ficção e The Tiger, de William Blake, para a poesia. Sou cética quanto à diferença entre livros para leigos e livros de especialistas; livros de graduação e livros de pós-graduação. Da minha perspectiva democrática sobre a leitura, há camadas de exploração do texto para níveis diferentes de leitores. Mergulhei no Dworkin, amado por poucos, temido por muitos.

Por que me aventurei?

Costumo pensar os níveis de leitores conforme a experiência com a leitura, com os assuntos e com as ferramentas de exploração do texto. Neste sentido, qualquer leitor está apto à leitura de Ulysses, de James Joyce, da Bíblia ou de qualquer obra filosófica complexa; mesmo as temidas obras de Física Teórica [nas quais já nadei de braçada e me afoguei, às vezes, confesso], usando as ferramentas apropriadas para explorar diferentes camadas de profundidade do texto. Consigo identificar ao menos quatro níveis de leitores:

Nível 1

Estes leitores são falantes da língua na qual a obra foi escrita, então, conseguem identificar o vernáculo, a cadeia de significados, alguns conceitos e, com a ajuda de um dicionário etimológico e de um dicionário específico da área, exploram a primeira camada de leitura, retendo alguns elementos textuais e extratextuais como produto. Eles são apresentados ao conhecimento. Tudo é novo e surpreendente,  mas esta é apenas uma etapa, um rito de iniciação obrigatório.

Nível 2

Estes leitores, além de falarem a mesma língua na qual a obra foi escrita, conseguem extrair outros códigos do texto lido, com auxílio de ferramentas mnemônicas e estratégias de abordagem do assunto. Fazem fichamento, mapas mentais, resumos do conteúdo, anotam o texto, leem resenhas sobre o assunto e opiniões especializadas para entender elementos extratextuais. Estes leitores têm algum compromisso em produzir um material final da leitura e conseguem alguma familiaridade com o próprio texto. Podem repetir o material lido, algumas referências textuais e conceitos importantes. Geralmente realizam leitura dirigida por um professor,  orientador, ou leitor mais experiente. Eles absorvem o conhecimento.

Nível 3

Além do estágios 1 e 2, este leitor consegue explorar uma camada mais profunda do texto, pois conhece a área do conhecimento, outras obras com o mesmo assunto e conceitos relevantes sobre o tema. Ele consegue analisar o impacto do autor e da obra dentro da área do conhecimento, possui domínio da historicidade da obra e de seu ambiente científico, artístico ou literário. Consegue comunicar, resenhar criticamente e abstrair os conceitos-chave do material lido, bem como a influência de outros autores e conteúdos sobre a obra. Entende, por exemplo, o conceito de autopoiesis e, ao mesmo tempo, sabe da influência de Maturana e Varela sobre Niklas Luhmann. Estes leitores conseguem se apropriar dos conceitos e traduzi-los no ambiente de suas vivências. São leitores com alguma técnica e experiência de leitura na área da obra e em outras áreas do conhecimento.  Em geral, possuem uma dimensão literária, pedagógica, sociológica, histórica  filosófica e psicológica dos conteúdos, confrontando-os à luz da experiência. Eles divulgam o conhecimento e não sentem o peso do conteúdo e da extensão do material lido.

Nível 4

Estes leitores exploram a camada mais profunda dos conteúdos.  Além do domínio obrigatório dos três níveis anteriores, eles produzem material científico,  literário, pedagógico  ou tecnológico na área ou em áreas afins. Além disto, conseguem complementar, inovar, reconstruir e atualizar o conteúdo na sua área de domínio. São leitores experientes  com uma vida intelectual ativa. São  consumidores de conteúdos em diversas áreas, por onde navegam com facilidade, estabelecendo linkagens e produzindo insights com criatividade heurística. Eles têm assinatura própria quando produzem e reproduzem o conhecimento.  São professores, cientistas, jornalistas, críticos, escritores,  comunicadores… Estes leitores provocam impacto no mundo da ciência, da literatura  da política e da cultura, pois conseguem criar conceitos, bordões, expressões, aforismos, categorias linguísticas, termos…  Seu trabalho resulta de intensa dedicação ao mundo do intelecto, onde são conhecidos e agraciados com títulos, prêmios e loas. São nomes expressivos no ambiente por onde trafegam. São aqueles de quem se fala no ambiente da ciência,  da cultura, da opinião e das artes.

Um aparte para os gênios

Os gênios não cabem nessa classificação anterior. Estão deslocados do ambiente de classificações e possuem histórias singulares. São raros e aparecem de vez em quando no ambiente da cultura, das ciências, da tecnologia e das artes.  Ou são proeminentes, ou encontrados por serendipidade. Eles impulsionam saltos para a humanidade em várias áreas. São disruptivos; singulares. Eles inventam técnicas e tecnologias novas, criam personagens literárias inesquecíveis, agremiam multidões em torno de suas ideias, compõem belas sinfonias, criam ritmos populares, mobilizam a opinião, fundam escolas, aumentam o tamanho dos céus e eternizam seus nomes na história da humanidade. Nascem dentro e fora das academias; às vezes, nas ruas, na ágora pública. No paroxismo, dividem em duas linhas a história: antes e depois deles. São aqueles de quem todos ouvirão falar o nome por milênios. Devemos e deveremos muito a eles, mas nem sempre seremos gratos. Às vezes os apedrejaremos ou os levaremos para morrer na cruz, mas não daremos mais do que passos em torno de nossas próprias órbitas sem seus triângulos, equações, ensinamentos, parábolas e buracos negros.

Quem são as raposas e ouriços de Dworkin?

Feitas as escusas acima, pelas quais já peço desculpas aos especialistas pelo atrevimento de ler e de comentar a obra mais hermética de filosofia política de Dworkin (afinal, há leitores de todos os níveis), irei me aventurar em procurar os tais ouriços.

Costumo pensar que todo leitor tem  curiosidade pela intimidade do escritor da obra que lê. Eu, por exemplo, imagino Dworkin pela manhã, preguiçosamente lançado sobre uma cadeira,  em sua biblioteca de paredes altas, cheias de muitos livros falantes. Notebook sobre a escrivaninha,  café fumegante na xícara. O cérebro começa a despertar, muito pelo boost de cafeína: máquina pensante, muito pensante. Agora as primeiras linhas: vamos revisitar os mortos no panteão da sabedoria. Convida Arquíloco, da sala VIP da poesia,  para pensar sobre o valor: neste caso, a Justiça. A frase, tornada célebre por Isaiah Berlin: a raposa sabe muitas coisas, mas o ouriço sabe uma coisa muito importante. Dworkin coloca o cérebro para rodar na velocidade máxima, como o carrossel de um circo perigoso. Graves óculos, mãos agitadas, então: este livro defende uma grande e antiga tese filosófica: a unidade do valor.

Matou a personagem no início da novela? Não. Esta é uma narrativa filosófica. Há grandes chances de o spoiler conduzir o leitor para milhares de salas imaginárias, cada uma delas com um écran diferente por onde vários filmes são projetados. O valor é uma coisa muito importante. Este é um roteiro para ouriços, não para raposas.

Ouriços, peguem as suas pipocas, acomodem-se em seus assentos, não façam barulho. Temos algumas personagens obrigatórias nesta história.

 Dworkin roça os pés um por sobre o outro, imagina seu auditório universal em silêncio e roteiriza:

A democracia

Devemos pressupor que esta é a grande heroína, mãe dos ouriços.  Ouriços não habitam em hordas autocráticas.  Essa é a selva das raposas. Ouriço, você nunca deve ir lá. Em uma comunidade verdadeiramente democrática, cada cidadão participa com um valor igual e isto está matematicamente para além de um voto igual.

 A justiça e a liberdade

filhas da democracia,  não há conflito e altercação entre elas. A democracia protege a coerência e a integridade de suas filhas.

O direito

Dworkin bebe um gole de café, esboça um sorriso enquanto se lembra de toda a paz roubada de Robinson Crusoé pelo intruso Sexta-Feira e relembra o  belo brocado latino ubi ius ibi societas, ubi societas ibi jus. Então,  certamente recorda de suas primeiras lições na Faculdade de Direito. Aquele professor emocionado gastando todo o seu latim para tentar ensinar na  língua de Cícero, Catulo, Justiniano… Injetar paixão na veia de seus propedeutas, mostrar que o caminho é sinuoso e repleto de curvas. Mais um pouco de café, para afirmar que, na película de ouriços não haverá conflito entre justiça e direito. Quando as leis forem injustas, o Estado de Direito guiará os governantes e cidadãos para um compromisso sobre o requisito da justiça.

Tomada direito X justiça

O direito não se rivaliza com o sistema de regras da moral, pois este é um ramo da árvore genealógica da moral, de quem é filha a justiça. Esta árvore genealógica tem alguns entes ilustres: a moralidade política,  que é um ramo da moralidade pessoal; esta, por sua vez, um ramo da teoria geral sobre viver bem.

Procusto, filho de Poseidon, um vilão semideus, talvez o pai de todas as raposas truculentas

Os filhos de Poseidon sempre entram nos roteiros para causar desordem. Na Odisseia, de Homero, Polifemo provocou a briga entre Ulisses e Poseidon. Na narrativa de Dworkin, a fórmula da justiça da cama de Procusto é uma rival da democracia e das grandes virtudes políticas. Uma vitória de Procusto, nesta narrativa de ouriços,  é insignificante.

A interpretação

Esta não é exatamente uma personagem.  É uma espécie de voz da narrativa. Os personagens de nossa narrativas são conceitos interpretativos, por opção do narrador. Mas qual tipo de interpretação? Segundo Dworkin, uma interpretação baseada em valor. Interpretar os valores da democracia,  da liberdade, da igualdade e da justiça à sua melhor luz, elegendo-se critérios históricos,  sociológicos, psicodinâmicos capazes de conduzir o intérprete a uma interpretação tão boa quanto seria a melhor interpretação do poema de Yeats, Sailling to Byzantium. Interpretação capaz de mostrar o poema,  e o direito, à sua melhor luz.

A ética

Esta personagem é a mensageira de como devemos viver e como devemos fazer de nossas vidas algo válido. Essa responsabilidade é individual. Esta personagem sisuda ensina como delinear uma zona individual de amortecimento da vida: a dignidade.

A política

A política e a moral devem ser irmãs siamesas na narrativa de ouriços.  Pela moral, Dworkin traz à luz uma interpretação kantiana para dizer que só podemos respeitar adequadamente a nossa própria humanidade se respeitarmos a humanidade no outro. Aqui ocorre um belo momento de abraço entre a ética (individual) e a moral (coletiva). Dworkin imagina uma tomada emotiva neste belo encontro.   A política é a personagem decisiva e final deste roteiro, para arrematar a vitória das virtudes públicas na selva de ouriços,  onde a dignidade individual encontra na ágora pública a indivisibilidade e unidade de valor.

É um longa-metragem de fôlego, roteirizado em 497 páginas, por onde Dworkin irá dialogar, em sua egrégora espetacular, com Nietzsche, para falar da subordinação do indivíduo à moralidade; Thomas Hobbes, para defender que a moralidade realiza o interesse de toda a comunidade; Immanuel Kant, do ponto de vista da abnegação individual que a moral requer; David Hume, para defender a autonomia da moral em relação à ciência e à metafísica. 

Haverá muitos duelos de espadas e eventuais batalhas sangrentas nesta narrativa épica, por onde transitarão os mais caros de nossos valores, ameaçados pelo ceticismo, pela falsidade, pela imoralidade política e por toda a sorte  de algaravias das raposas, mas, ao final, sobrevive a unidade de valor, como viga mestre desta intensa narrativa sobre como deve se sustentar a vida em uma comunidade política e plural.

Ronald Dworkin pretendeu construir uma teoria política válida para qualquer comunidade, dialogando do lugar de habitante de uma comunidade política liberal igualitarista, para a qual os valores políticos da democracia e do estado de Direito são fundamentais. Foi um trabalho espetacular. Dworkin transcendeu em 2013, aos 82 anos. Sucedeu H. L  A. Hart em Oxford e construiu vigas fortes em sua vasta obra para a filosofia política ocidental. 

Shirlei Florenzano Figueira
Shirlei Florenzano, advogada e professora da Universidade Federal do Oeste do Pará - UFOPA, mestra em Direito pela UFPA, Membro da Academia Artística e Literária Obidense, apaixonada por Literatura e mãe do Lucas.

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